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COLUNA
Euges Lima
Euges Lima é historiador, professor, bibliófilo, palestrante e ex-presidente do IHGM.
Euges Lima

O documento perdido: João Lisboa, leitor de Michelet

O jornalista, politico e historiador maranhense do século XIX, João Francisco Lisboa (1812-1863), de indiscutível talento, um dos principais nomes do Panteão Maranhense, “sacralizado” após sua morte por seus conterrâneos e contemporâneos.

Euges Lima

Não é apenas nos Apontamentos para a História do Maranhão e na Vida do Pe. Antônio Vieira que podemos conhecer o historiador João Francisco Lisboa, pois o historiador se faz conhecer em tudo o que escreve, mesmo numa correspondência particular[...]”.

Maria de Lourdes M. Janotti (1977)

O jornalista, politico e historiador maranhense do século XIX, João Francisco Lisboa (1812-1863), de indiscutível talento, um dos principais nomes do Panteão Maranhense, “sacralizado” após sua morte por seus conterrâneos e contemporâneos, além de sucessivas gerações de pósteros maranhenses, sempre foi reconhecido pela crítica literária, pelos historiadores da literatura e historiadores em geral, como um dos maiores historiadores brasileiros do Brasil imperial. Silvio Romero, em sua História da Literatura Brasileira, chega mesmo a afirmar que a obra de João Lisboa foi superior a de Vanhagen, pois acreditava que a obra do autor da História Geral do Brasil era pobre de interpretação e sentimento nacional, ao contrário da de Lisboa, muito crítica e interpretativa.

Sendo assim, no universo da historiografia brasileira, o Timon maranhense é lembrado por sua crítica social afiada, sobretudo dos costumes políticos do Maranhão e do Brasil de seu tempo, além de sua escrita elaborada, prosa viva e cativante. Portanto, os historiadores e biógrafos, principalmente, os mais contemporâneos, que se debruçaram sobre sua vida e obra, perceberam na escrita e no fazer historiográfico de João Lisboa, em muitos aspectos, um historiador fora da curva no Brasil do século XIX, onde o paradigma historiográfico era a história positivista, factual, cronológica e dos acontecimentos. 

Lisboa buscava escrever uma história dos costumes, uma história das mentalidades políticas do Brasil império, uma história temática, crítica, não cronológica; uma história mais social e cultural que factual, que rompia com a tradição dos cronistas coloniais e dos novos historiadores positivistas. Tentava escrever uma nova história do Maranhão e do Brasil, a partir de novos temas, novos objetos, novos métodos e novas abordagens.

Mas algo que os leitores e estudiosos do autor do Jornal de Timon parecem que nunca conseguiram explicar ou entender direito, como se faltasse uma peça de um quebra-cabeça, foi o porquê ele tinha essa narrativa e historiografia tão inovadora para o século XIX. Quais as inspirações e influências que o levaram a abordagens historiográficas que no Brasil só vão chegar e se popularizarem no século XX, mais precisamente nas últimas décadas desse século. Isso nunca ficou muito claro. Talvez, de fato, nem teria como se chegar a essas conclusões, sem o surgimento de alguma prova documental, mais direta e explícita, ou seja, sem um dado novo.

É sobre isso, esse dado novo, a respeito de João Lisboa, suas leituras e influências, que queremos neste artigo, discorrermos e divulgarmos em primeira mão, para a comunidade acadêmica, os pesquisadores e para o grande público, pois recentemente, uma descoberta inédita e incrível, de um manuscrito, que chegou até o nosso conhecimento, revela que o historiador maranhense, era leitor do historiador francês, Jules Michelet, seu contemporâneo, porém no contexto da França.

No entanto, até hoje, não havia qualquer evidência direta de que Lisboa tivesse lido ou se inspirado em Jules Michelet (1798-1874), o renomado historiador francês do século XIX que é comumente conhecido como um dos principais precursores do que hoje chamamos de nova história cultural.

É no século XIX, em meio a uma história positivista, norteada por uma metodologia inspirada nos moldes das ciências experimentais, onde o elemento básico era o fato histórico, ou seja, o acontecimento que Michelet surge como um historiador que busca outros modelos de explicação da sociedade, uma história da moda alimentar, da sensibilidade, do comportamento das elites francesas no século XVIII, das mentalidades, enfim, uma história etnológica. Nesse sentido, afirma Jacques Le Goff (1993): "Lucien Febvre ontem, um Fernand Braudel hoje, que primeiro viram em Michelet o pai da história nova, da história total que quer abarcar o passado em toda a sua totalidade, desde a cultura material até às mentalidades".

Esse cenário muda radicalmente agora com essa recente descoberta desse documento, um bilhete manuscrito, autêntico, assinado por João Lisboa, no qual ele menciona diretamente o autor da História da Revolução Francesa (1847-1853). O destinatário da referida correspondência era o seu amigo e futuro biógrafo, Antônio Henriques Leal (autor do Panteon Maranhense). O conteúdo em linhas gerais é sobre Lisboa escrevendo para Henriques Leal, alegando não poder comparecer a certo encontro, pois estaria enfermo, no entanto, pede ao amigo que envie o “Michelet.’’ Ora, parece evidente que Lisboa está usando uma figura de linguagem, uma metonímia, ou seja, trocando o autor pela obra.

O documento foi encontrado por acaso, esquecido no interior de um livro raro do século XIX, adquirido há uns dez anos em um sebo do Rio de Janeiro por um bibliófilo maranhense, mas que somente agora, há uns nove meses, que sua transcrição foi finalmente feita por este autor, tendo seu conteúdo surpreendente, revelado. 

Em abril de 2024, o colecionador, ao nos mostrar a foto do pequeno manuscrito, via WatsApp, cuja transcrição fiz imediatamente. Percebi tratar-se de texto autêntico, inédito e de conteúdo incrivelmente revelador. O alertei à época, sobre a possível dimensão do achado.

Um bilhete original, autêntico e inédito de João Francisco Lisboa, perdido, por si só, já se constituía em algo muito valioso, como percebeu desde o início o referido bibliófilo, mesmo que seu conteúdo fosse trivial e não trouxesse nenhuma revelação mais especial. Porém, decididamente não era o caso. Tal foi minha surpresa ao concluir a transcrição que levou alguns poucos minutos. 

Como que por um átimo, um filme passou em minha cabeça e rapidamente, imaginei tudo que aquelas poucas linhas poderiam revelar e trazer luz aos estudos de João Lisboa. Seria o elo perdido, a pedra angular, aquela peça do quebra-cabeça que faltava, que há pouco nos referimos? Finalmente, depois de tanto tempo esquecido no interior de um livro, mas não um livro qualquer e sim: “Obras de João Francisco Lisboa”, edição póstuma, revisada e publicada em São Luís por Luiz Carlos Pereira de Castro e Henriques Leal, no ano de 1864 (1.ª edição).

Fiz imediatamente as conexões da obra do nosso Timon, do seu fazer historiográfico tão desconcertante para época e seu contexto com o historiador francês, Jules Michelet. A conclusão, para mim, parecia clara. Na verdade, aquele bilhete era uma evidência. Lisboa lia Michelet! Era seu leitor e isso, em grande medida, explica o tipo de historiografia fora dos padrões, praticada por ele no Maranhão. Essa correspondência comprova isso, é a prova documental, cabal. Lisboa era leitor do historiador francês que na França rompia com a história positivista e buscava fazer uma nova história dos franceses e da nação francesa. João Lisboa, por seu turno, no Maranhão, ao mesmo tempo, influenciado provavelmente pelas ideias e historiografia do seu colega francês, pelos seus livros, tentava fazer o mesmo aqui, se inspirando e readaptando à nossa história, realidade social, cultural e a sua própria visão de mundo e de história.

Exceção à regra, esse achado confirma o que a historiadora e professora emérita da USP Maria de Lourdes Mônaco Janotti já sugeria nos anos de 1970, inicialmente em sua tese de doutoramento (1971) e depois em livro: “João Francisco Lisboa: jornalista e historiador”, publicado pela editora Ática, em 1977. Ela foi a primeira e única estudiosa a traçar paralelos entre a historiografia do maranhense e a do historiador francês em questão (ou sua corrente historiográfica), mas até então sua tese carecia de mais evidências diretas. Agora, com este bilhete, sua hipótese ganha um novo fôlego.

Acerca disso, afirma Janotti (1977, p. 50 a 51): “[Lisboa] ainda promete explorar a “índole” do nosso povo, no que demonstra ligar-se aos anseios do movimento romântico [...] Assim, a Historiografia romântica francesa, para tomar um exemplo, tem em Michelet o historiador da “Alma francesa”, de uma idealização onde os fatos históricos perdem a sua real dimensão [...]. Ainda, e de conformidade com o espírito romântico, não hesita Lisboa em considerar a possibilidade de prever os acontecimentos históricos [...] (grifo nosso)”.

Para Janotti, a visão de história de João Lisboa estava associada à visão da historiografia romântica francesa e destaca como principal nome dessa corrente historiográfica do século XIX, o historiador Jules Michelet, estabelecendo assim de alguma forma, se não diretamente, mas indiretamente uma ligação entre esses dois historiadores. 

Não citando de forma categórica que Lisboa era leitor da obra de Michelet, mas sugerindo sua filiação à historiografia românica europeia, da qual Jules Michelet era o grande expoente. Ela percebe também a leitura por parte do historiador maranhense de historiadores românticos franceses e ingleses, cujas referências, estão na bibliografia citada no Jornal de Timon. Demonstrando assim, a autora, imaginação e perspicácia. Em que pese saber da grande circulação de livros importados, traduções e da literatura francesa e europeia em geral no meio intelectual maranhense dos oitocentos.

Tanto João Lisboa quanto Michelet, escreveram histórias impregnadas de análises sobre a sociedade e a cultura. Enquanto este último revolucionou a historiografia europeia com uma abordagem que incluía a história das mentalidades e dos sentimentos, Lisboa, em sua obra, Jornal de Timon, demonstrou um olhar crítico sobre os costumes sociais e políticos do Maranhão e do Brasil. Essa descoberta sugere que João Lisboa não apenas conhecia a obra de Michelet, mas pode ter sido influenciado por suas ideias e visão acerca da história.

A revelação desse documento abre um novo campo de investigação para os historiadores. O impacto desse achado pode levar a novas pesquisas sobre as influências europeias na historiografia brasileira e, especialmente, sobre como João Lisboa absorveu e reinterpretou as ideias de Michelet.

Esse manuscrito reforça a importância de João Lisboa no cenário intelectual do Brasil e destaca a conexão do Maranhão com o pensamento historiográfico europeu do século XIX. A expectativa agora é que esse bilhete seja publicado e analisado em detalhes. O documento pode não apenas confirmar a leitura de Michelet por João Lisboa, mas também revelar nuances inéditas sobre sua visão de história e sociedade.

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