Espelhos e Identidade
Reproduzo aqui o texto da professora Danielle Castro da Silva acerca do meu primeiro livro de poesia, intitulado O mar de vidro (2023).
O pensamento de base ocidental tem, entre muitos mitos e lendas, a figura do “duplo”. Duplicar é lançar ao mundo duas vezes a pretensa mesma figura. Anuncia-se, deste modo, a questão da “identidade”. No entanto, o que é duplo, embora sendo idêntico ao original, é, ao mesmo passo, distinto de si. É uma maneira de expressar a si mesmo como o idêntico, mas também o que é um outro, muitas vezes colocado em posição de oposto. Trata-se de um sujeito que pode se ver como um objeto, sem, no entanto, olvidar do fato de que esse objeto não é isento do sujeito que o constitui.
Assim, esse “outro que sou eu”, a ideia do alter ego que Brunel (2005) afirma ser uma das primeiras denominações do duplo, aparece em muitas figuras: de Narciso, que se olha no espelho d’água e, por isso, se afoga na imagem feita de si, a de Édipo, que tem a condição de estar aqui como humano e, ao mesmo tempo, fora daqui, num aspecto sobre-humano. Além dessas imagens consagradas pela mitologia clássica, o romantismo alemão traz a figura do Dopelgänger de Richter, o “duplo”, o “segundo eu”, que Brunel apresenta como traduzindo-se, literalmente, por “aquele que caminha do lado”, “companheiro de estrada”. Para Rimbaud, é a concepção do “je est um autre”, coadunando com o sentido de Richter: “assim designamos as pessoas que se veem a si mesmas” (Brunel, 2005, p. 261).
Esse tema é retomado na análise da identidade narrativa proposta por Ricœur, em O Si-mesmo como um Outro (1991). A singularidade do sujeito estaria permitida por esse seu duplo aspecto identitário, apresentando-se em “mesmidade”, que ele chamará de “identidade-idem”, caracterizada pelas relações de comparação pelas semelhanças, e em “ipseidade”, ou “identidade-ipse”, em que residiria a mudança, o que é distinto e peculiar, a alteridade em cada um. Devido à “identidade-ipse” é que o sujeito pode, ao mesmo tempo, ver a si-mesmo como um outro. São aspectos da identidade que só podem se mostrar concomitantemente, pois a existência de um depende da existência do outro, numa profunda alteridade:
Uma alteridade que não é – ou não é só – de comparação é sugerida pelo nosso título, uma alteridade tal que possa ser constitutiva da própria ipseidade. O si-mesmo como um outro sugere desde o começo que a ipseidade do si-mesmo implica a alteridade em um grau tão íntimo, que uma não se deixa pensar sem a outra, que uma passa bastante na outra, como diríamos na linguagem hegeliana. Ao ‘como’ gostaríamos de ligar uma significação forte, não somente de uma comparação – si-mesmo semelhante a um outro –, mas na verdade de uma implicação: si mesmo considerado...outro (Ricœur, 1991, p.14).
Ver-se “pelo lado de fora” significa, primeiramente, ver a si mesmo. Da mesma maneira, é porque existe a possibilidade de se ver como um outro que o sujeito se liberta de viver mergulhado na mesmidade, podendo enxergar o peculiar no que é muito próprio de si. A literatura, nesse contexto, apresenta-se como a possibilidade de, pelo que narra, reconfigurar o ser: “Pareceria, portanto, plausível considerar válida a cadeia seguinte de asserções: a compreensão de si é uma interpretação; a interpretação de si, por sua vez, encontra na narrativa, entre outros signos e símbolos, uma mediação privilegiada [...]” (Ricœur,1991, p. 138).
A poética, por sua vez, aprofunda a materialização desse duplo, pelas possibilidades de expressão que a metáfora apresenta, já que é a base da manifestação da emoção lírica. Para Collot (2018, p. 51-52):
O sujeito não pode se exprimir senão por essa carne sutil que é a linguagem, que dá corpo ao seu pensamento, mas que permanece um corpo estranho. [...] Sua abertura ao mundo, ao outro e à linguagem faz dele um ‘estranho por dentro – por fora’. É sua verdade mais íntima e ele não pode, pois, apoderar-se dela novamente pelas vias da reflexão e da introspecção. É fora de si que ele a pode encontrar. Talvez a emoção lírica apenas prolongue ou reacione esse movimento que constantemente leva e expulsa o sujeito para fora de si e por meio do qual unicamente pode existir e se exprimir. É somente saindo de si que ele coincide consigo mesmo, não no modo da identidade, mas da ipseidade, que não exclui, mas pelo contrário, inclui a alteridade, como bem mostrou Ricœur. Não para se contemplar no narcisismo do eu, mas para se realizar a si mesmo como um outro.
Assim, o poético possibilita o aprofundamento da manifestação das identidades pela linguagem. É nesse contexto que se apresenta a obra O mar de vidro (2023), da escritora Gabriela Lages Veloso. Com título homônimo remetendo a uma das mais emblemáticas poesias da obra, manifesta, entre seus 44 poemas, o estilhaçar das identidades no fluir da vida, apresentando frequentemente as figuras do duplo pelas ideias de “retrato”, “espelho” e pela oposição entre “visível” e “invisível”. A obra divide-se em três partes: Gaia, Vênus e Atena1, revelando, de pronto, a presença da mitologia grega nos escritos da autora. Além dessa clara relação intertextual, a poeta percorre por reflexões mais específicas a respeito da figura do “espelho”, presente tanto em sua vida acadêmica, em suas pesquisas e publicações, quanto na obra poética em questão.
Enquanto o primeiro poema do livro de Veloso anuncia a unidade temática homonimamente nomeada de Gaia, o segundo se intitula, oportunamente, como “A origem” (2023, p.16), iniciando uma reflexão sobre a linguagem como concretização dos seres, a um só tempo “essência/identidade e significado”:
A origem
Me foi dada uma difícil missão,
nomear todos os seres da terra.
capturar-lhes a essência,
identidade e significado,
em uma única palavra.
Escolher um nome
é contar uma história.
Mas o que veio primeiro?
O nome ou o significado?
Nessa minha difícil missão,
vivo sobressaltado.
E se um dia eu esquecer as palavras?
Como algo tão pequeno pode conter o mundo?
A palavra contém o mundo.
A identidade aparece em confluência com o significado, revelando a essência do ser pela nomeação. No entanto, embora reconheça sem titubear que a escolha de um nome signifique contar uma história – e, portanto, narrar, o que é apontado por Ricœur (1991, p. 138) como a possibilidade para a mediação entre signos e símbolos envoltos no ser – dúvidas se sucedem: “Mas o que veio primeiro, o nome ou o significado?”, “E se um dia eu esquecer as palavras?”, “Como algo tão pequeno pode conter o mundo?”. Tais perguntas, embora aparentemente transpareçam alguma hesitação da voz poética sobre o fenômeno da linguagem, finalizam-se assertivamente com a conclusão de que “A palavra contém o mundo”. Assim, a “difícil missão” de poetizar, revelando as essências pelas identidades, a partir do que a poesia oferta pela linguagem é, em si, abranger a criação do mundo. Sobre isso, a voz poética não revela mais dúvidas, pois o próprio escrito é a prova desse mundo criado pela via da metáfora, na parte Gaia.
A apresentação desse mundo criado poeticamente, desde o título da obra, externa uma reflexão sobre dois elementos: “mar” e “vidro”, que se conjugam com um terceiro elemento, que aparentemente seria distinto: o “espelho”. É fundamental observar que o objeto “espelho” é feito de vidro, quanto mais rígido, plano e polido, mais seguro de se ver. Porém, necessita de um fundo obscuro para que tudo se revele. As águas podem servir de espelho, fazendo pensar em profundidades e em fluidez, mas também em tudo aquilo que pode se turvar e enganar os olhos. É assim que Veloso (2023, p.18) faz a sua primeira referência à figura do “espelho” na sua obra, indiciando os significados do “mar” que nomeia a primeira parte do título:
O mar
Ninguém nunca tocou
o teu mistério. Tens essa
imensidão, que atravessa
horizontes, mas, uma
simples concha te contém.
Na superfície, tudo que
podemos enxergar é um
espelho perturbado pelas
ondas. Um vento forte
insiste em abalar tuas
águas carregadas de sal.
Na profundidade, tudo
que se escuta é o eco do
teu silêncio, que grita, aos
quatro ventos, histórias
naufragadas pelo tempo.
Nessa jornada, tens a
lua como guia das tuas
marés. Quem atravessa
tuas águas, mesmo que
somente com o olhar,
sente a difícil liberdade
de retornar ao porto.
Enquanto inicialmente chama a atenção para a amplitude misteriosa do mar – que se apresenta em metáfora, entre outras possibilidades, como um interlocutor a quem a voz poética se dirige, tratado na segunda pessoa do singular –, a poesia contrapõe a imensidão sugerida com a contenção em um elemento de pequenas dimensões físicas: a concha. Em A poética do espaço, Bachelard trata a figura da “concha” como uma simbologia que abrange muitas ambiguidades: rigidez x maciez; vida x morte; intimidade x exterioridade; sujeito x objeto; refúgio x abandono, entre outras reflexões possíveis. Não se trata de mero contraste, mas de revelar as complexidades do viver e do ser, portanto, da existência, já que não somos constituídos só de uma coisa ou só de outra: “Tudo é dialética no ser que sai de uma concha. E, como não sai inteiro, o que sai contradiz o que fica fechado. O interior do ser fica aprisionado a formas geométricas sólidas. Mas, na saída, a vida é tão apressada que nem sempre toma uma forma definida como a de uma pequena lebre e de um camelo” (Bachelard, 1998, p. 268).
Ao longo do poema, percebe-se que é o outro que atravessa as águas, não é o ser que sai de si para lidar com o outro, posto que o mar, embora imenso, seja também submetido a uma concha. Este que atravessa as águas não consegue voltar ao porto sem dificuldades, atraído que está. Não é aprisionado, posto que livre, mas essa é uma “difícil liberdade”, a escolha de voltar ao porto. O conflito entre descoberta e medo remete, ainda mais uma vez, à ideia da concha, apresentada como abertura dos versos. Diz Bachelard (1998, p. 269):
Se entretanto pudéssemos restaurar, na própria observação, uma ingenuidade total, isto é, reviver realmente a observação primeira, colocaríamos em ação o complexo de medo e de curiosidade que acompanha toda primeira ação sobre o mundo. Quereríamos ver e temos medo de ver. Eis o começo sensível de todo conhecimento. Nesse começo, o interesse ondula, se confunde, volta. O exemplo que encontramos para indicar o complexo medo e curiosidade não é grande. O medo diante do caracol é imediatamente tranquilizado, usado, “insignificante”. Mas nós nos propomos nestas páginas a estudar o insignificante. Revelam-se aí, às vezes, estranhas sutilezas.
Assim, o mar é sempre o duplo, ondulando entre o que se enxerga na superfície e nas profundezas. Na superfície, o espelho que se mostra (e mostra o exterior, que nele se enxerga) é perturbado pelo vento que insistentemente abala as águas carregadas de sal. Na profundidade, o silêncio ecoa e “grita” as “histórias naufragadas pelo tempo”. A direção do grito é “aos quatro ventos”, que perturba aquilo que se mostra na aparência da superfície. O mar é uma afirmação de que o que se abala que busca se reconhecer em identidade-idem do ser vem daquilo que fica dos rastros das “histórias naufragadas pelo tempo”, aquele ser que já não sou eu, mas que faz parte de mim, em ipseidade. Portanto, o mar, mesmo quando em silêncio e obscuridades, é um espelho imenso criado por águas. Para se enxergar, é preciso abandonar a própria concha e mergulhar na imensidão da existência. O mergulho sugerido aprofunda-se, por fim, na poesia que intitula a obra: O mar de vidro (Veloso, 2023, p. 36):
O mar de vidro
Em tua fria e funda lâmina,
encontram-se mistérios
escondidos, o medo do
confronto com verdades
ocultas, ou, quem sabe de,
simplesmente, perder-se.
Tua dura água reflete
e encanta os Narcisos,
levando-os ao eterno
descontentamento.
Teu lume frio revela
a fera interior que, em
vão, tenta-se esconder.
Espelho, és o poço mais
profundo que existe.
Em uma só mirada
atravessas as barreiras
do tempo e da vida.
Mágico, sombrio ou
verdadeiro, apenas,
és um mar de vidro.
É onde se apresenta a segunda parte do título, pela figura do “vidro”, desde o primeiro verso caracterizando-se como “fria e funda lâmina” em que se encontram escondidos “o medo do/ confronto com verdades/ ocultas, ou, quem sabe de,/ simplesmente, perder-se”. Percebe-se aí o diálogo entre esses versos e a poesia “O mar”, analisada anteriormente. A apresentação da identidade do sujeito aparece na terceira estrofe e desemboca no “espelho” da quarta estrofe. Enquanto na terceira estrofe revelam-se os aspectos sombrios (“dura água”, “eterno descontentamento”, “lume frio”, “fera interior”), portanto, a obscuridade do fundo do espelho, a última estrofe relembra aquilo que faz com que seja revelador das identidades existentes ao longo do “tempo e da vida” que atravessa.
É o “poço mais profundo que existe”. Para Chevalier & Gheerbrant (2001, p. 726-727), a figura do poço reúne três ordens: o profundo, o seu início exterior e o seu início interior. Se analisarmos a figura do “poço” em termos da identidade narrativa de Ricœur e reforçando a ideia da busca pelo conhecimento, podemos contemplar tais ordens como: o profundo (o mergulho em si), o seu início exterior (o olhar de si mesmo em identidade-idem), e o que se vê de dentro para fora (o si-mesmo visto como um outro). Assim, contemplar o ser em sua existência e interioridade é mergulhar num espelho “Mágico, sombrio ou/ verdadeiro, apenas”: um “mar de vidro”.
REFERÊNCIAS:
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Trad. Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
BRUNEL, Pierre (org.). Duplo. In: Dicionário de mitos literários. Trad.: Carlos Sussekind et al. 4. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2005.
CHEVALIER, Jean. GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos (mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números). Trad. Vera da Costa e Silva et al. 16. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2001.
COLLOT, Michel. A matéria-emoção. Trad. Patrícia Souza Silva. 1. ed. Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2018.
RICŒUR, Paul. O si-mesmo como um outro. Trad.: Lucy Moreira Cesar. Campinas, SP: Papirus, 1991.
VELOSO, Gabriela Lages. O mar de vidro. Belo Horizonte: Caravana, 2023.
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SOBRE A ENSAÍSTA: Danielle Castro da Silva é mestranda em Letras pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA), na linha de Estudos Teóricos e Críticos em Literatura. Graduada em Letras Língua Portuguesa, Língua Inglesa e Respectivas Literaturas pela Universidade Estadual do Maranhão (UEMA). Membro do Grupo de Estudos de Paisagem em Literatura (GEPLIT) - UFMA (CNPq), do Grupo de Pesquisa em Estudos Literários (GRIFO) - UFMA (CNPq) e do Grupo de Estudos Literatura e Ditaduras (GELD) - PUC-SP. É professora de Língua Portuguesa pela SEDUC-MA e pela SEMED - São Luís - MA. E-mail: daniellecastrodasilva@gmail.com.
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SOBRE O ENSAIO: O ensaio de Danielle Castro da Silva, intitulado O “si-mesmo como um outro”: espelhos e identidade em O Mar de Vidro, de Gabriela Lages Veloso, foi originalmente publicado no livro Jogo de Espelhos: entre símbolos e representações literárias (2024).
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FONTE: VELOSO, Gabriela Lages. ADÃO, Pedro Lopes. Jogo de Espelhos: entre símbolos e representações literárias. Carviçais, Portugal: Lema d’Origem, 2024. Disponível para venda em: <https://www.bertrand.pt/livro/jogo-de-espelhos-gabriela-lages-veloso/30133397>.
1 Em uma entrevista realizada em 23 de janeiro de 2024, por meio virtual, a autora comenta a nomeação de cada parte da obra: “Gaia [...], é uma representação divina da Terra, essa seção fala a origem do mundo, e com a origem da palavra também.” Sobre a parte Vênus: “o símbolo da deusa Vênus [...] é um espelho. Chamamos o símbolo do feminino de ‘espelho de Vênus’”. A respeito da seção Atena, afirma ser uma reflexão sobre tempo, espaço, memórias e uma reflexão sobre o próprio fazer poético. Na análise feita neste ensaio, consideramos a questão da identidade do feminino desdobrando-se em identidade-idem e identidade-ipse, abrangendo poesias das três seções.
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