"A violência psicológica contra a mulher é a base para outras violências", diz psicóloga
Em conversa com O Estado, a psicóloga e doutora em direitos humanos, Artenira Silva, explica o que é violência psicológica e como combatê-la; mês é marcado pela campanha Agosto Lilás, de combate a violência contra a mulher
São Luís – Neste sábado, dia 7 de agosto, a Lei Maria da Penha (nº 11.340) completa 15 anos de criação. Com a função de estipular punição adequada e coibir atos de violência doméstica contra a mulher, esses 15 anos são marcados por avanços e ainda muitos desafios. Em uma sociedade patriarcal e estruturalmente machista, existem vários tipos de violência contra a mulher, que não são necessariamente físicos, mas causam graves danos em todos os âmbitos da vida dessa mulher, e a violência psicológica é uma delas. Recentemente, esse tipo de abuso psicológico que já era previsto no artigo 7º da Lei Maria da Penha, foi incluído como crime no Código Penal, com punição de reclusão de seis meses a dois anos, além do pagamento de multa. Essa mudança é parte da Lei 14.188/21.
Para alertar a população e explicar como combater esse tipo de agressão, Artenira Silva, psicóloga, pós doutora em direitos humanos, docente e pesquisadora em gênero, conversou com O Estado. Veja a entrevista abaixo:
Sabemos que a violência psicológica ainda é muito difícil de identificar, muitas vezes as mulheres só percebem depois que passaram por isso. Nesse caso, você pode primeiro me explicar o que é a violência psicológica contra a mulher?
A violência psicológica contra a mulher é qualquer ação ou omissão que afete essa mulher em sua autoestima, sua capacidade de tomar decisões, em seu pleno desenvolvimento, em sua possibilidade de definir livremente suas escolhas, inclusive no que diz respeito a sua liberdade em relação a como ela se veste, como ela se comporta, com quem ela se relaciona, em seu cotidiano ou em suas esferas específicas, como, por exemplo, no trabalho, dentro da sua maternidade e do ambiente doméstico.
E sim, a violência psicológica contra a mulher ainda é muito difícil de ser identificada pela própria vítima porque ela é naturalizada. A partir do momento que, historicamente, a gente se coloca na condição de estar sempre desqualificando a mulher em várias dimensões, isso se torna natural. Então basta que uma mulher, por exemplo, se posicione, coloque suas posições, e se elas forem contrárias as de quem está ouvindo essa mulher, ela é facilmente rotulada como “louca”, “intransigente” ou de outra forma pejorativa. E o objetivo da desqualificação de uma mulher, da violência psicológica, é a humilhação dessa mulher. Então a violência psicológica visa degradar e humilhar.
E sim, a violência psicológica contra a mulher ainda é muito difícil de ser identificada pela própria vítima porque ela é naturalizada. A partir do momento que, historicamente, a gente se coloca na condição de estar sempre desqualificando a mulher em várias dimensões, isso se torna natural. Então basta que uma mulher, por exemplo, se posicione, coloque suas posições, e se elas forem contrárias as de quem está ouvindo essa mulher, ela é facilmente rotulada como “louca”, “intransigente” ou de outra forma pejorativa. E o objetivo da desqualificação de uma mulher, da violência psicológica, é a humilhação dessa mulher. Então a violência psicológica visa degradar e humilhar"Artenira Silva, psicóloga
Que bens jurídicos são lesados diante da violência psicológica?
Os bens jurídicos lesados com a violência psicológica podem ser de três ordens. Eu posso ter uma lesão à honra dessa mulher, então ela vai se sentir afetada de uma forma muito objetiva, no que diz respeito a sua dignidade e honra. O bem lesado também pode ser a saúde dessa mulher, então se ela ocorre em âmbito familiar, ela não acontece só uma vez, mas sim de forma cíclica, e muitas vezes dura anos. Aquela desqualificação de “você é burra”, “você não entende”, “essa comida tá péssima”, em que ela tá sempre sendo exigida, mas nunca consegue corresponder ao que tá se demando dela, vai comprometendo a autoestima dela, a sua saúde em âmbito psicológico e somático, porque ai ela tem cefaleia, enjoos, vômito, perde a vontade de viver, etc. E o terceiro bem jurídico lesado é o projeto de vida dela, é a existência dela, quando ela passa a se comprometer a tal ponto que perde emprego ou ela tem que abandonar o emprego, deixa de se relacionar com os amigos e familiares, precisa mudar de cidade. Quando os papéis sociais dela, famílias, amigos, trabalhos, são irreversivelmente afetados, o bem lesado, é o projeto de vida dessa mulher.
Então você pode perceber que a violência psicológica tem resultados diferentes a depender de o quanto ela ocorre e o nível que ela ocorre.
Em casos em que homens tem poder de decisão sobre o corpo da mulher, como os planos de saúde que pedem autorização do marido para aplicar o DIU, podem ser considerados como violência psicológica?
Esse não é um caso específico de violência psicológica, porém é uma violência contra a mulher que gera consequências psicológicas. Quando falamos da autorização do marido para uma mulher colocar um DIU, a gente está diante a uma violência reprodutiva. Não se trata especificamente de ter o direito apenas sobre o corpo da mulher, mas o controle ao sistema reprodutivo. Então vamos ter violências obstétricas e violências reprodutivas. Agora, todos os tipos de violência têm um impacto psicológico que não são necessariamente categorizadas como violências psicológicas. O estupro, por exemplo, é uma violência física com impacto psicológico extremamente intenso.
Como perceber os sinais de uma violência psicológica em uma relação?
Temos que pensar em qualquer tipo de relação. Em relação pai e filha, em irmão e filha, em mãe e filha, e na relação amorosa, que pode ser do ficante ao casamento. Tudo que definir controle e exercício de posse sobre essa mulher, a gente vai entender como sinalizador categorizante de violência psicológica. Por exemplo, o seu namorado resolve dizer “entre casais não existem segredos, você tem que me contar tudo”, essa palavrinha ai, “você tem que”, já define uma restrição da liberdade dessa mulher. Você não tem que contar tudo porque você precisa manter sua individualidade. Ou então “Eu te dou minha senha do Instagram e você me da a sua”, qual o objetivo de se ter a senha de acesso de alguém que não seja controlar essa pessoa? E você não controla a fidelidade, você não controla o pensamento ou o sentimento de alguém. Você pode tá beijando seu namorado pensando numa outra pessoa.
Então, essa ficção de controle, de posse, que normalmente os homens têm em relação às mulheres, e que podem caracterizar também relações intrafamiliares que não são amorosas, são caracterizadas como relacionamentos abusivos.
Aquela desqualificação de “você é burra”, “você não entende”, “essa comida tá péssima”, em que ela tá sempre sendo exigida, mas nunca consegue corresponder ao que tá se demando dela, vai comprometendo a autoestima dela, a sua saúde em âmbito psicológico e somático, porque ai ela tem cefaleia, enjoos, vômito, perde a vontade de viver, etc."Artenira Silva, psicóloga
Inclusive, se aborda muito a violência psicológica em casos de relacionamento amorosos, mas não tanto em relacionamentos familiares de pais e filhos. É mais difícil da vítima identificar esse abuso em relações familiares?
Quando pensamos em violência contra crianças, meninos e meninas, todas as estatísticas nacionais apontam que o ambiente mais agressor para a criança menor de sete anos, na primeira infância, é o doméstico. E se, dentre as crianças, a mais agredida é a menina, especialmente por abuso sexual, a gente vai entender claramente que a violência psicológica também está presente em relação as meninas e nas mulheres. Então no caso da violência no ambiente familiar, ela é mais naturalizada, pois os adultos tendem a perceber seus filhos como objetos. Então quando um homem percebe uma mulher como um objeto, “é minha mulher”, ele tá reproduzindo algo que está naturalizado, pois pais têm esse sentimento de posse sobre as filhas.
Como um amigo ou um parente pode ajudar uma mulher que uma mulher pode estar expostas a essa violência?
A melhor ajuda sempre implica em exercer acolhimento, compreensão, sem julgamentos e sem impor que a vítima abandone seu agressor. Ela só conseguirá abrir mão do convívio com seu agressor quando superar sua dependência emocional dele e quando recuperar sua autoestima. Estimular o acompanhamento psicológico de profissional com expertise em gênero também é muito importante.
Você pode explicar mais um pouco sobre como acaba sendo esse acompanhamento psicológico e a recuperação dessa vítima?
O tratamento psicológico da vítima se inicia com uma avaliação psicodiagnóstica completa de modo que a gente perceba o nível de dano e poder de consequência que a violência perpetra efetivamente gerou, que pode ser em âmbito emocional e da honra dessa paciente, pode ser um comprometimento generalizado da saúde psicológica psicossomática dessa paciente, então frequentemente elas já se autoidentificam como estando mortas em vida, que define frequentemente um diagnóstico de depressão, com psicossomatizações intensas de doenças crônicas, inclusive, ou um desgaste de seus papéis sociais e de seu projeto de vida. Então, o diagnóstico inicial do poder de dano dessa violência psicológica cíclica e continuada, é o que define a forma de tratamento que pode ser realizada tanto em âmbito individual, quanto em âmbito familiar, incluindo apoiadores sociais dessa mulher.
E qual a importância de se debater esse assunto?
Não só debater, como devidamente enfrentar e coibir a violência psicológica contra as mulheres em todos os âmbitos sociais, mas em especial nas instituições de saúde e do sistema de justiça, é urgente, porque a pandemia do século identificada pela ONU, antes da Covid-19, é a pandemia de violação de diretos humanos de mulheres, e a violência psicológica é a absoluta base da pirâmide de violências. Ela pode ser identificada de modo isolado ou ela acompanha todas as demais formas de violência. Então a violência psicológica não só se constitui como a segunda maior violência denunciada nos canais 180, como ela se configura como a violência mais dolorosa e com maior poder de dano e desestruturação da vítima, de acordo com a percepção das próprias vítimas.
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