Comentário*

Do Cerco do Porto à Balaiada: as guerras de Ivo

Crítica literária comenta obra maranhense revisitada por Ronaldo Costa Fernandes

Vera Lúcia de Oliveira

Atualizada em 11/10/2022 às 12h16
Livro "Balaiada" é de autoria de Ronaldo Costa Fernandes
Livro "Balaiada" é de autoria de Ronaldo Costa Fernandes (Balaiada )

São Luís - Balaio era um homem manso e pacífico, respeitador do governo do menino Pedro II. Balaio era o apelido de Manuel Francisco dos Anjos Ferreira. E de anjos ele entendia: tinha duas filhas lindas, lindíssimas. Dois anjos. Filhas e mulher fabricavam com suas mãos delicadas cestos e balaios, negócio da família que prosperava. Balaio era feliz em sua vida pacata. Até o dia em que viu o que não devia, ou seja, o que dois soldados do Capitão Raimundo Guimarães – a quem abrigara – fizeram com suas filhas.

Assim Manuel Francisco entra na guerra que se chamou Balaiada, insurreição armada de 1838-1840 no Maranhão, protagonizada pelos grupos rivais Bem te vis e Cabanos, liberais e conservadores, perseguidos e perseguidores, respectivamente. Luta política de negros escravizados (quase metade da polução do estado), vaqueiros e outros trabalhadores contra os donos de terra, prefeitos e juízes, desencadeada pelo vaqueiro Raimundo Gomes, o Cara Preta, ao libertar o irmão da cadeia e ganhar adesão até da guarda policial. Luta de pretos e brancos, de pobres e ricos que se estendeu pelo Pará, Piauí e Ceará e contou, em sua repressão, com a mão de ferro de um certo coronel Luís Alves de Lima e Silva, mais tarde Duque de Caxias. Assim mergulhamos na história do Maranhão e do Brasil – não sem antes mergulhar também na guerra do Porto, em Portugal, onde o intrépido dom Pedro I, que abdicara do trono brasileiro, disputava o poder com o irmão dom Miguel. E Ivo estava lá.

Mas quem é Ivo?

Ivo da Costa Moraes e Andrade é o protagonista e narrador principal de Balaiada (São Luís: Academia Maranhense de Letras, 2021), romance de Ronaldo Costa Fernandes, que revisitou essa que foi uma das muitas revoltas do período inicial da nossa história após a Independência do Brasil que, em 2022, completará seu bicentenário. História de lutas com direito a rapto de mulheres, como o de Helena de Tróia, figura mítica do imaginário ocidental, bem como a volta de Ulisses depois de longa ausência e muitas batalhas e, para apimentar, há um amor que não ousa dizer o nome.

Ivo era estudante em Coimbra numa época em que as famílias brasileiras abastadas mandavam seus filhos para estudar Direito na milenar instituição da cidade, a Universidade de Coimbra. Foi com má vontade que Ivo se formou. Lá, conviveu com o amigo de infância, Nunes, cuja relação de amizade e rivalidade se estenderia por toda uma vida. Frente e verso da moeda. Herói e vilão. Gato e rato. Estão sempre juntos e separados por ideais, interesses e caráter. No Cerco do Porto, em que ambos lutaram ao lado de dom Pedro I, Ivo conviveu ainda com aqueles que mais tarde seriam os grandes escritores portugueses do século 19, Alexandre Herculano e Almeida Garrett, a quem muito admirava. Todos empenhados na mesma luta. Já no Rio de Janeiro, Ivo foi amigo de Joaquim Manuel de Macedo, que se tornaria célebre com o romance A moreninha, obra que daria início à prosa do nosso Romantismo, em 1844. É a literatura falando da literatura. Dessa forma, a ação do romance transcorre em Portugal e no Brasil, lugares onde Ivo viveu e conheceu: Coimbra, Porto, Rio de Janeiro, São Luís, Caxias e outros mais, de onde testemunhou os acontecimentos. Principalmente na fazenda Macaúbas, propriedade da família, que um dia virou terra arrasada e foi o gatilho para Ivo revoltar-se, pegar em armas e ir à luta com os rebelados.

E é sobre a revolta de Balaio e de Ivo, que representa a de todos os que lutaram por mudanças, que queremos falar. E ninguém melhor do que Albert Camus para saber de revolta, pois em seu livro extraordinário O homem revoltado (1951) analisa em profundidade, como grande pensador, essa difícil questão. Para começar, pergunta: “O que é um homem revoltado?” E responde: “Um homem que diz não.” Mas “também um homem que diz sim.”. Esclarece e exemplifica em seguida esse “sim” e esse “não”: um escravo que percebe que “as coisas já duraram demais”, que até aí – chega de sim - , vê-se diante de uma fronteira que diz “há um limite que você não vai ultrapassar.” Prossegue Camus:

Desta forma, o movimento de revolta apoia-se ao mesmo tempo na recusa categórica de uma intromissão julgada intolerável e na certeza confusa de um direito efetivo, ou mais exatamente, na impressão do revoltado de que ele “tem o direito de...”. A revolta não ocorre sem o sentimento de que, de alguma forma e em algum lugar, se tem razão. É por isso que o escravo revoltado diz simultaneamente sim e não.

Camus nos diz ainda que calar-se é deixar que acreditem que nada se deseja. Mas rompendo esse silêncio, o homem escravizado mostra que deseja e julga. E se rebela: “Caminhava sob o chicote do senhor, agora o enfrenta.”. E diz mais: “Antes morrer de pé do que viver de joelhos.”

Acompanhando o raciocínio de Camus, identificamos na narrativa de Balaiada uma recusa dos escravos no Maranhão em aceitar essa condição humilhante, a partir do momento em que se toma consciência do valor da liberdade. A consciência vem à tona com a revolta. E o mais belo raciocínio de Camus é o que diz, como vimos na Balaiada de Ronaldo, que, na revolta, o sujeito defende um direito, um valor que está acima si próprio, pois em todo ato de revolta há a identificação com o outro. “Na revolta, o homem se transcende no outro, e, desse ponto de vista, a solidariedade humana é metafísica.”

Não foi de outra maneira que lemos a história dessa revolta em que escravos quebraram correntes centenárias rompendo abusos e desumanidades, que não há palavras que as definam ou justifiquem. Ler esse livro é, além do prazer da arte da literatura, ir do passado ao presente (os tempos se alternam), informar-se sobre os acontecimentos da história do Brasil, muitas vezes escamoteados pela máscara de uma gente cordial, no sentido de ordeira e pacífica, que não se rebela. As revoltas foram muitas no período pós-Independência: no Norte, no Nordeste e no Sul, pois não foi sem dor que a sociedade aceitou o domínio e as leis draconianas do primeiro momento da nossa independência, que guardavam ainda os interesses e a tirania de Portugal ocultos sob o grito “Independência ou Morte”, em 7 de setembro de 1822. Depois do grito só faltava a independência...

Finalizando, temos em Balaiada uma leitura que nos coloca em meio a uma guerra que não pode ser esquecida. Uma guerra de homens revoltados em busca da liberdade e da justiça, que colocaram acima de suas vidas. Um movimento de todos, não egoísta, como disse Camus.


* Crítica Literária e professora da Ceub, autora de O Beijo de Judas

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