Transformação na fé e crença

Sincretismo renovado e devoção a São Pedro: fé expressa contra o vírus

Seja por interferência católica ou tradição de religiões de matriz africana, crença em um dos santos mais populares faz pessoas realizarem atos inéditos

Thiago Bastos / O Estado

Atualizada em 11/10/2022 às 12h16
Brincadeira realizada no terreiro de Iemanjá, na Travessa Fé em Deus, na data alusiva a São João; datas são celebradas pelos membros
Brincadeira realizada no terreiro de Iemanjá, na Travessa Fé em Deus, na data alusiva a São João; datas são celebradas pelos membros

São Luís - A pandemia do coronavírus consolidou costumes e reafirmou crenças internas no ambiente de religiões, em especial, nas datas alusivas a santos. Se por um lado a referência continua sendo o calendário católico, com a devoção contida nos fiéis e construção de um cronograma de homenagens – as próximas referências serão para São Pedro, no dia 29 deste mês (próxima terça-feira) e no dia 30 para São Marçal (quarta-feira) – por outro, devotos e membros de religiões de matriz africana reinventam costumes, ao mesmo tempo em alusão à originalidade, com essência de fé e um sentimento comum de desejo de que a pandemia acabe o quanto antes.

No caso dos católicos, com ajustes, as celebrações religiosas ocorrem com limitações de presença física em templos, diante das regras da administração pública para o controle da covid, o que exige o uso de novas ferramentas, como as plataformas digitais, para a transmissão de celebrações e missas. Na programação alusiva à São João, por exemplo, a Arquidiocese de São Luís promoveu agendas com restrição de fiéis.

O mesmo ocorreu, em paralelo, nos terreiros de matriz africana que também fez adaptações no culto à figura de João. O Estado acompanhou, por exemplo, a programação do Terreiro de Iemanjá da Travessa da Fé em Deus. No local, após a ladainha (em que há o elemento do sincretismo ou da releitura de um ato de cunho católico), o boi batizado (Mimo de Dom João e Mimo de Codó em alusão aos orixás e o recebimento dos santos) representaram a famosa brincada cujos elementos suscitam às semelhanças claras com a manifestação mais tradicional do bumba-boi.

Itens como os pandeirões, o boi em si, a figura do miolo e dos brincantes em volta se misturam ao recebimento de divindades. No Terreiro, cujas manifestações estavam restritas há alguns meses, os participantes – durante o encantado – retiraram as máscaras. Mas, de acordo com os organizadores, todos os que estiveram no ato estavam vacinados contra a Covid-19.

Para o membro do Terreiro de Iemanjá da Travessa da Fé em Deus, Biné Gomes Abnolô, o ato em si foi um dos primeiros do pós-vacina dos frequentadores do local. “Com as ladainhas e os cânticos aos vodus e orixás, trabalhamos por João pela figura de João de Lima, Dom João e outros”, disse.

A pesquisadora e técnica do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional no Maranhão (Iphan), Izaurina Nunes, cita a originalidade dos grupos e a necessidade de que, ainda que com restrições, de permanência da tradição dos ritos voltados a esta essência religiosa.

“A capacidade que as diferentes manifestações têm de, rapidamente, se adaptarem aos novos tempos é que agrega elementos ainda mais únicos às tradições religiosas do nosso estado. São exemplos de originalidade e, ao mesmo tempo, de crença na figura de São João únicos em nosso tempo. Eles precisam se manifestar e agregam suas medidas de segurança para evitarem quaisquer infecções”, disse.

Por enquanto, de acordo com a direção do Terreiro, desde o início da pandemia, nenhum dos frequentadores morreu devido à Covid-19.

De joelhos nas escadarias sagradas da igreja do santo, Regina Soeiro e Raimundo Campos fazem questão de contar da devoção ao santo
De joelhos nas escadarias sagradas da igreja do santo, Regina Soeiro e Raimundo Campos fazem questão de contar da devoção ao santo

A fé católica no Santo Pedro que faz crer no fim da pandemia
Recolhido em uma residência na Rua de São Sebastião, na Madre Deus, esperando pela tão sonhada reforma da Igreja que carrega seu nome, a imagem de São Pedro cobre de bênçãos, dizem os fiéis católicos, as pessoas que nele creem, confiam e que, por seu poder, podem reverter o atual cenário mundial da pandemia do coronavírus.

Sem missas ou eventos com lotação máxima e com requisitos pré-estabelecidos, a programação - em referência ao santo padroeiro dos pescadores - fez com que os devotos mudassem hábitos, sem perder a crença em sua capacidade de reversão dos problemas pela sua benevolência e proximidade com Deus.

Mesmo em reforma e de forma restrita, alguns fiéis estendem suas convicções, levantam suas mãos e, de máscaras, expressam seus respeitos a São Pedro. Os gestos que contrastam com os grupos em massa em volta da igreja de São Pedro são uma representação simbólica do momento vivido pela humanidade, ou seja, que faz hábitos serem revistos.

Apesar das limitações, os devotos fazem questão de sacrifícios. O Estado acompanhou a peregrinação de dois exemplos de pessoas que amam São Pedro, fazem de tudo para estarem ao lado do santo e que, com a força das orações, esperam o fim das mortes pela Covid-19.

LEIA TAMBÉM:

Homenagens a São Pedro e São Marçal reinventadas pela pandemia

Uma delas foi Regina Soeiro, pessoa que ajuda na organização das homenagens ao santo e uma das principais colaboradoras da comunidade da Madre Deus. De joelhos nas escadarias sagradas da igreja do santo, a colaboradora faz questão de contar a sua devoção ao santo. “Eu já combinei com ele que, se ele e Deus quiserem, tudo isso passará logo. Em 2022, vamos ver essa igreja cheia, com o costume das pessoas estarem aqui, e, sem dúvida, sem qualquer tipo de restrição. Já estou vacinada e, se Deus permitir, outras pessoas terão este acesso”, disse.

O misto de fé e crença se assemelha a de outras pessoas que, sem a oportunidade ou possibilidade de estarem na igreja de São Pedro, cultuam o santo às suas maneiras, seja em casa ou com suas orações particulares.

Por ora, a ciência nega qualquer comprovação do poder da fé na recuperação de pessoas em tratamentos de saúde. Porém, a subjetividade do crer na cura não busca, para quem está no grupo de pessoas neste sentido, qualquer relação com o mundo materializado. Não se busca, a princípio, a combinação entre fé e ciência. O crer, neste caso no santo, nasce do único sentimento de que a benevolência do mesmo, neste caso de São Pedro, curaria os pecados e realizaria milagres.

Outro devoto a São Pedro é Raimundo Campos. Auxiliar de serviços gerais, o profissional colabora, no momento, na reforma da igreja do santo e, ao mesmo tempo, renova a união com São Pedro. Para ele, a oportunidade do serviço é uma forma, segundo ele, de estar mais próximo do santo. “A minha crença no São Pedro é que me dá força para continuar a minha batalha diária. Um esforço que, nesta reforma, vai deixar esta igreja mais bela e, com certeza, com todo mundo vacinado contra esta doença, vai melhorar ainda mais a fé no nosso santo”, disse.

Segundo ele, cujo quantitativo de promessas o fizeram “perder a conta” de quantos compromissos foram firmados ao santo, é preciso que todos reflitam sobre o momento da humanidade. “Às vezes, Deus dá oportunidade para todos nós, para que possamos refletir sobre questões da vida. Então essa pandemia é mais uma destas”, disse.

Diferentes visões da crença em Pedro
Devido a este sincretismo religioso, é possível ver sinais de crença em santos e outros entes em várias religiões, em especial no catolicismo e nas religiões de matriz africana. No caso do Maranhão, a simbiose entre cultura e religião exacerbam tradições que, com a pandemia, tornaram-se inviáveis.

A técnica do Iphan no Maranhão, Izaurina Nunes, cita as diferenças na crença a São Pedro pelos católicos e seguidores de religiões afro. “No caso de determinadas religiões, a devoção à São Pedro o credencia para, simbolicamente, ser o responsável pela entrega do boi aos cristãos para que, durante a festa junina, possam se divertir. Posteriormente, há outros atos simbólicos que encerram a festa e, o caso do encontro tradicional na igreja de São Pedro, trata-se de uma alvorada espontânea, sem qualquer tipo de organização específica”, disse. Para ela, trata-se de uma espontaneidade com certa organização.

Em relação às religiões de matriz africana, para Izaurina, o culto é voltado para o pagamento de obrigações. “São Pedro seria o orixá xangô, com a crença do pagamento de obrigações e atos que simbolizam o recebimento destas entidades. No caso da data alusiva, as religiões africanas farão a ladainha no dia 29 deste mês, porém sem brincadas”, explicou.

SAIBA MAIS

Quem foi Pedro na visão da bíblia?
De acordo com o portal “Terra Santa”, com base em análise de especialistas e historiadores, São Pedro nasceu em Betsaida, que seria um pequeno vilarejo às margens do lago de Genesaré, ou no Mar da Galileia, no norte de Israel. Segundo pesquisadores, seu nome de nascimento era “Simão” e quando conheceu Jesus Cristo, Simão ou Pedro era casado. Pedro (ou Simão) era filho de Jonas e registrava um irmão, André.

Pedro e André tornara-se discípulos de Jesus e, mais tarde, foram indicados como apóstolos. Como pescador, Pedro em especial trabalhava no Mar da Galileia, uma espécie de lado de água doce formado pelo Rio Jordão, na região da Galileia em Israel.

Como era a festa a São Pedro até 2019, antes da pandemia?
Em 2019, quando não se expressava qualquer preocupação com período pandêmico, a festa de São Pedro era marcada pelo grande volume de boieiros em volta da igreja de São Pedro. Conforme a tradição cita e preconiza, entre os dias 28 e 29, a concentração começa durante a noite com as bênçãos do santo que coloca sua proteção nas brincadeiras que, à época, ainda arrastavam multidões por arraiais pela cidade.

No tom das canções típicas do período, brincantes e fiéis passam pela Casa das Minas, localizada na região central da capital. Depois, seguiram em cortejo até a Igreja de São Pedro. Na construção, os grupos se revezavam no depósito de ofertas e no pedido de proteção.

Seria o ponto final do período junino, no entanto, mal sabiam as pessoas que o término simbólico há dois anos suscitaria em um lapso temporal tão grande assim até a próxima festa plena à São Pedro.

“A minha crença no São Pedro é que me dá força para continuar a minha batalha diária. Um esforço que, nesta reforma, vai deixar esta igreja mais bela e, com certeza, com todo mundo vacinado contra esta doença, vai melhorar ainda mais a fé no nosso santo”Raimundo Campos, auxiliar de serviços gerais
“Eu já combinei com ele que, se ele e Deus quiserem, tudo isso passará logo. Em 2022, vamos ver essa igreja cheia, com o costume das pessoas estarem aqui, e, sem dúvida, sem qualquer tipo de restrição. Já estou vacinada e, se Deus permitir, outras pessoas terão este acesso”Regina Soeiro, ajudante na organização das homenagens ao santo

Leia outras notícias em Imirante.com. Siga, também, o Imirante nas redes sociais X, Instagram, TikTok e canal no Whatsapp. Curta nossa página no Facebook e Youtube. Envie informações à Redação do Portal por meio do Whatsapp pelo telefone (98) 99209-2383.