Internet: vítimas de crimes através das telas relatam suas histórias a O Estado
Jovens relatam casos de perseguição, ameaças e xingamentos pela internet; segundo a ONG SaferNet, nos últimos 14 anos foram registradas 24.790 denúncias anônimas de Violência ou Discriminação contra Mulher
São Luís – Em maio de 2012, a atriz Carolina Dieckmann teve seu computador invadido e fotos íntimas vazadas na web, ela também sofreu tentativa de sextorsão (ameaça de se divulgar imagens íntimas para forçar alguém a fazer algo - ou por vingança, ou humilhação ou para extorsão financeira) para ter suas imagens retiradas da rede. A sextorsão é uma forma de violência grave, que pode levar a abalos psicológicos, com consequências extremas como o suicídio.
Na época, ainda não existia nenhuma lei que amparasse mulheres vítimas desses tipos de crimes informáticos (crimes que acontecem na internet), e após a grande repercussão do caso envolvendo a atriz, foi criada a lei 12.737 de 2012, conhecida como lei “Carolina Dieckmann”, que, entre outras coisas, tornou crime a invasão de aparelhos eletrônicos para obtenção de dados particulares.
Contudo, apesar de oito anos da criação da lei, mulheres e meninas ainda são alvos de crimes informáticos diariamente. Discursos de ódio, “body shaming” (nome que se dá à prática de atacar uma pessoa verbalmente por conta de sua forma física – e deixá-la com vergonha por isso), exposição de conteúdos íntimos e pornografia de vingança são só algumas das diversas formas de violência que as mulheres estão sujeitas na web.
A ONG SaferNet Brasil, associação com foco na promoção e defesa dos Direitos Humanos na Internet no Brasil, recebeu e processou nos últimos 14 anos, desde 2006, 24.790 denúncias anônimas de Violência ou Discriminação contra Mulheres envolvendo 7.347 páginas (URLs) distintas (das quais 2.928 foram removidas) escritas em 8 idiomas, atribuídos para 28 países em 5 continentes. As denúncias foram registradas pela população através dos 3 hotlines brasileiros que integram a Central Nacional de Denúncias de Crimes Cibernéticos.
Os números ainda são baixos comparados com a quantidade de pessoas que tem acesso a internet e a infinidade de conteúdos que são publicados todos os minutos, isso porque nem sempre a vítima consegue denunciar esses tipos de crime, seja por medo, vergonha, negligência das autoridades ou até mesmo porque, naquele momento, não entendeu o ocorrido como um ato criminoso.
No Maranhão não há dados específicos a respeito dos crimes informáticos voltados para as mulheres. De acordo com a Secretária de Segurança Pública (SSP), “não há número que pode ser fornecido sobre os crimes, uma vez que eles acabam sendo pulverizados, e em cada caso de violência se apresenta de uma forma, o que necessita avaliação específica para cada um”, disse em nota para esta reportagem.
Discursos de ódio
Ele achou meu endereço e me mandava ele por contas fakes dizendo que ia me achar e me matar. Eu fiquei com tanto medo que não saia de casa. Era em todas as redes sociais. Ele me mandava links de estupro. De sites pornôs com vídeos de mulheres sendo estupradas. E tudo isso a troco de nada, sabe? Eu não fiz nada no jogo para ele. Ele só ouviu minha voz e começou a me assediar. Samanta (nome ilustrativo para a segurança da vítima), vítima de CiberStalking
A psicóloga e professora especializada no estudo sobre discursos de ódio contra a mulher, Artenira da Silva, explicou que muitas mulheres, principalmente jovens e adolescentes, muitas vezes tem dificuldade de entender esse tipo de violência como um crime mesmo compreendendo que tem algo errado, por não acontecerem de forma física. Porém, ainda assim os crimes informáticos contra a mulher são considerados de extrema gravidade.
“A internet usada como um mecanismo de vingança, de você socializar conteúdos íntimos, não necessariamente eróticos, mas conteúdos íntimos de uma mulher sem a permissão, e isso define a pornografia de vingança, é um crime de máxima gravidade porque a torna persecutória.
Ela (a vítima) passa a ter dificuldade em confiar nas pessoas, e é muito frequente nos relatos das vítimas, elas tenham que mudar a cor do cabelo, mudar de emprego, de escola. Elas fazem uma alteração em todo o seu contexto de vida e não conseguem se desvincular sem acompanhamento profissional adequado desse tipo de sensação de que está todo mundo julgando ou efetivamente a percebendo de forma desqualificadora”, explicou a professora.
A estudante Evellin Moura tinha apenas 15 anos quando foi vítima de discursos de ódio durante uma partida de jogo online. “Eu estava em uma partida de League of Legends, meu nome no jogo era feminino e por isso qualquer jogador na partida saberia que sou uma garota. Durante a partida, após eu cometer algumas falhas, um jogador começou a me chamar atenção de forma extremamente grosseira. Primeiro perguntou se eu era nova no jogo e depois passou a perguntar se eu era garota. Após eu responder que sim, ele mandou mensagens no chat da partida dizendo que meu lugar não ali, julgou minha aparência mesmo sem nunca ter me visto, além de usar xingamentos machistas para tentar me fazer sair da partida.
Eu lembro dele falando coisas do tipo ‘Ah, tinha que ser mulher mesmo, você não consegue nem cozinhar direito, imagina jogar isso aqui. Deve ser uma gorda que ganha dinheiro iludindo os caras. Sai daqui! Isso aqui não jogo mulherzinha não’", relatou a jovem.
Assim como Evellin, outras três mulheres relataram ao O Estado situações semelhantes, em que foram alvos de discursos de ódio por serem mulheres em ambientes de jogos onlines. Algumas, inclusive, receberam ameaças de estupro e xingamentos em teor sexual. As jovens preferiram não revelar suas identidades.
O advogado criminalista e autor do livro “Liberação de direito penal, liberdade sexual e gênero”, José Muniz Neto, explica que o discurso de ódio em determinadas circunstâncias também pode ser enquadrado como crime, a exemplo dos crimes contra honra, e que em casos em que envolve questão de raça, cor, etnia, religião, origem, gênero ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência, são considerados como graves.
A psicóloga Artenira da Silva também enfatizou: “Os crimes virtuais, em geral, têm um poder tão severo que eles afetam, não apenas a saúde da mulher, mas toda sua organização de vida. E quando um crime afeta a saúde, o bem lesado não é mais a honra, é a saúde. E aí nós estamos falando do artigo 129 do Código de Processo Penal que diz claramente que lesão a saúde corporal é lesão a integridade física e ou a saúde da vítima, e o conceito de saúde precisa ser o conceito oficial da OMS (Organização Mundial da Saúde), que diz que a saúde engloba um bem-estar físico e psicossocial”. As vítimas desse tipo de crime podem adoecer, do ponto de vista somático, apresentando sintomas como cefaleia, vômitos, enjoos e até depressão. Segundo ainda a psicóloga, mais de 50% dessas vítimas acabam tendo ações Suicidas.
O advogado ainda destaca que em casos de discursos de ódio ou perseguição, é importante que a vítima não apague as mensagens, ou então registre antes de deletar e bloquear o agressor, para levar o material para a denúncia.
CiberStalking - Relato
Samanta (nome ilustrativo para preservar a imagem da vítima) contou ao O Estado que sofreu ameaças e foi perseguida após ser identificada como mulher durante um jogo online. O caso aconteceu no início de 2019, quando a jovem tinha apenas 18 anos.
A jovem foi vítima do crime de CiberStalking, ou perseguição online. De acordo com o Safernet, quando o interesse no perfil se torna algo constante e incômodo, vale avaliar o que de fato pode ser uma violação ou não. Enquanto definições legais de “stalking” variam de uma jurisdição para outra, um conceito que pode ser aqui apresentado é quando alguém importuna e vigia de forma persistente, com o objetivo de incomodar, aterrorizar e alarmar outra pessoa.
“Eu gosto muito de jogos e, na época, meu nome no jogo era o meu nome real, o mesmo do meu Instagram. Eu estava jogando e todos estavam em ligação no mesmo time. Eram pessoas aleatórias que eu não conhecia. Um dos caras viu que eu era mulher e ele simplesmente começou a me xingar por nada, falando coisas realmente pesadas que todos do time se incomodaram. Ele não parava. Mais tarde ele me achou nas minhas redes sociais e começou a me perseguir.
Ele achou meu endereço e me mandava ele por contas fakes dizendo que ia me achar e me matar. Eu fiquei com tanto medo que não saia de casa. Era em todas as redes sociais. Ele me mandava links de estupro. De sites pornôs com vídeos de mulheres sendo estupradas. E tudo isso a troco de nada, sabe? Eu não fiz nada no jogo para ele. Ele só ouviu minha voz e começou a me assediar.
Eu fazia cursinho e acho que ele pesquisou os horários e viu que eu só ia de noite e me disse exatamente a hora em que eu ia e voltava de lá.
Ele sabia nome da minha mãe e me mandava as faturas daqui de casa. Aleatoriamente me mandava informações sobre mim. Eu apagava tudo me tremendo toda para não ser real. Eu tive crise de ansiedade quase toda vez, ficava tremendo e ofegante e não falava para ninguém de tanto medo. Até que eu consegui falar com meu amigo na época e ele me ajudou a abrir o boletim de ocorrência de crimes virtuais. A polícia não fez muita coisa e até hoje ele não foi pego. Parecia que eu estava fazendo um drama. Sempre parece, para homem, que é drama, sabe? Enquanto eu estava com medo de morrer. Mas enviei uma foto do B.O para um dos fakes e o cara parou de me perseguir.
Hoje em dia, em todas as minhas redes sociais eu tento manter só gente que conheço porque eu tenho muito medo dele ainda querer tentar algo me vigiar”.
Casos conhecidos
No dia 21 de junho de 2019, Gabriela Cattuzzo, tida como uma das principais influenciadoras brasileiras na área de videogames, recebeu comentários com conteúdos misóginos e de teor sexual após postar uma foto.
Gabriela havia postado uma em que aparece sentada num touro mecânico. Um rapaz fez a seguinte postagem: "pode montar em mim à vontade". A influenciadora, então, respondeu: "Sempre vai ter um macho f*** pra falar merda e sexualizar mulher até quando a mulher tá fazendo uma piada, né? É por isso que homem é lixo". Após respostas, um seguidor disse não ter gostado da generalização, Gabriela respondeu que os homens que não a ofendem são minoria.
A reação chegou ao conhecimento de uma marca de acessórios para jogadores virtuais com a qual Gabriela tinha contrato. Segundo ela, sem antes de uma conversa, a empresa decidiu se posicionar retirando o patrocínio.
Fora do universo dos games, casos de violência contra a mulher também ocorrem e, muitas vezes, se tornam fatais, como o caso da adolescente de 17 anos, em maio de 2013, que morava em Parnaíba, no litoral do Piauí, e cometeu suicídio após um vídeo de sexo com uma garota e um rapaz, ambos menores de idade, serem vazados na Web. As imagens foram distribuídas por celulares na cidade, e inúmeras mensagens e comentários criminosos sobre o vídeo se multiplicaram.
A adolescente não foi a única vítima de exposição de conteúdos íntimos na internet. Em setembro de 2016 a italiana Tiziana Cantone, de 31 anos, também cometeu suicídio após a divulgação de um vídeo íntimo. Depois de uma difícil batalha legal, Tiziana conseguiu que o vídeo fosse retirado de vários motores de busca e plataformas, como o Facebook. No entanto, ela teve que pagar 20 mil euros por gastos processuais, um motivo a mais que a levou a acabar com sua vida, segundo a imprensa italiana.
Estupro Virtual
Apesar de ainda não ser um termo tão conhecido, as situações em que mulheres são obrigadas a cometerem qualquer tipo de ato sexual sem consentimento, são casos muito comuns na web, e, por isso, tribunais têm reconhecido a possibilidade de prática do estupro através do meio virtual.
“O estupro virtual nada mais é que a possibilidade de realização do já conhecido crime de estupro, mas através do ambiente virtual. Ou seja, não é um novo crime, mas o crime já existente de estupro que pode, segundo o entendimento recente de alguns Tribunais, ser praticado através de meios eletrônicos. A conduta do estupro consiste em forçar alguém, através de violência ou grave ameaça, a praticar relações sexual (em todas as suas variações) ou outro ato de cunho sexual/libidinoso. Na prática, o estupro virtual geralmente ocorre quando um indivíduo força outra pessoa, através de ameaça em disponibilizar imagens ou vídeos íntimos, caso esta não o envie mais materiais desta natureza”, explicou o advogado especializado em direito das mulheres, José Muniz.
De acordo ainda com o advogado, o primeiro caso de reconhecimento da possibilidade de realização do estupro virtual ocorreu no Piauí em 2017. Até 2020 já tiveram mais dois ou três casos espalhados pelo país. Inclusive, um no Rio Grande do Sul em que o indivíduo já foi condenado em primeira instância e teve sua condenação confirmada em segunda instância. Neste caso em específico, tratou-se de estupro de vulnerável.
Denuncie
O advogado José Muniz Neto explica que para denunciar, o primeiro passo é sempre registrar tudo que puder para auxiliar a Polícia e o Ministério Público nas investigações e processamentos dos crimes, inclusive, caso seja necessário, antes mesmo de interromper qualquer contato com o agressor.
No caso dos crimes sexuais, é aconselhável buscar o atendimento junto à Polícia para que eles possam elaborar a melhor estratégia para investigação da conduta em questão.
Já em relação à crimes cometidos por vídeo-chamadas, o advogado ressalta a importância das opções de gravação e fotos/printscreens das telas de celular, bem como de computadores. “O importante é que sempre que a vítima perceba que está sofrendo algum tipo de constrangimento, seja sexual, moral, patrimonial, etc., reflita em formas de registrar as condutas. Por isso é importante buscar o auxílio imediato da Polícia mesmo antes de romper qualquer contato com o criminoso, para que possam estabelecer a melhor forma de investigar o indivíduo em questão e, até mesmo, tentar realizar a sua prisão em flagrante”, frisou. Em termos gerais, sempre registre o que puder e busque o atendimento imediatamente junto à Polícia.
Os crimes que estão sob o manto da Lei Maria da Penha atualmente também podem ser registrados através do próprio site da Polícia Civil do Maranhão (delegaciaonline.ssp.ma.gov.br).
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