Política

Dois Chefes-Políticos e um Líder

Joaquim Itapary

Atualizada em 11/10/2022 às 12h20

Nos setenta e seis anos de sua História decorridos desde o fim do regime monárquico, em novembro de 1889, até as eleições de outubro de 1970 - excluído o período do Estado Novo, quando aqui se deu a intervenção federal na administração estadual -, a política maranhense foi conduzida por apenas dois Chefes-Políticos e um Líder: Benedito Leite, Vitorino Freire; e, José Sarney.

Logo após o golpe militar que pôs fim à Monarquia, entre 1889 e 1890, os presidentes da República nomearam, seguidamente, nada menos que seis governadores para o Estado. Nos oito anos seguintes, o Maranhão foi administrado por oito governos provisórios! Era o caos político-administrativo causado pela inopinada implantação do novo regime.

Tal ambiente de acomodações políticas pessoais e indefinições administrativas - que perduraria até 1898 com a eleição, para o governo estadual, de João Gualberto Torreão da Costa (Acusado pela oposição de servilismo a Benedito Leite, seu amigo pessoal) -, propiciou não somente o surgimento de novos protagonistas na pobre cena maranhense, mas dissimulou falsos pretextos para mudanças de posições partidárias: antigos monarquistas reapareceram travestidos de republicanos históricos, enquanto os autênticos propagandistas da República, à exemplo Paula Duarte, imediatamente deixavam a ribalta ou eram relegados ao ostracismo. Dentre os mutantes, aquele que se tornou mais eminente foi o sempre empedernido monarquista e conservador Benedito Pereira Leite.

Em Carta Aberta ao presidente Afonso Pena, a “Pacotilha”, de 5 de julho de 1906, assim identifica aquele político, qualificando-o de Tartufo : As novas instituições o encontraram ocupando um cargo na magistratura do interior...Nomeado inspetor do tesouro público,...nesse cargo, experimentou o desgosto de ver todos os funcionários da repartição se dirigirem ao palácio do governo, a fim de solicitar providências contra a impostura intolerável do seu chefe...(foi daí que) saiu o Dr. Benedito Leite para uma cadeira no Congresso estadual.

Então, era o Maranhão um estado de economia agropastoril destroçada pela extinção da escravidão, população rarefeita em imenso território econômica e espacialmente desintegrado, constituída, na sua maioria, de escravos recém libertos e seus descendentes diretos, analfabeta, desempregada ou em desemprego disfarçado, voltada para a subsistência, minimamente dedicada à produção mercantil, subsistindo à margem da economia monetizada. As esperanças econômicas se concentravam na aplicação de capitais salvados do cataclisma da Abolição na aventura da “disenteria fabriqueira”, que consistiu na irrefletida implantação de uma dezena de fábricas têxteis na Capital e em duas cidades do vale do Itapicuru, falidas e inoperantes no curso da década de 1950.

São Luís contava cerca de 40 mil habitantes – população equivalente à da atual cidade de São Bento, na Baixada. Destes, segundo o Censo de 1906, apenas 25% (10.000) sabiam ler. No Estado, de aproximadamente 500.000 habitantes, nestes incluída a população da Capital, somente 99.000, equivalentes a 19,8%, foram recenseados como alfabetizados. É em tal ambiente de estagnação econômica, de inexpressiva mobilidade social, de baixa cultura e incipiente instrução intelectual que se destacaram o estadista Benedito Leite e reduzido número de figuras de melhor nível de instrução, quase todos advogados, médicos e militares formados fora do Maranhão. Quadro social fidedigno do velho brocardo: Em terra de cegos, quem tem um olho é rei!

Cerca de três décadas após a morte de Benedito Leite, chega ao Maranhão, em 1934, o pernambucano Vitorino de Brito Freire. Aqui veio exercer as funções de secretário-geral do Estado, na administração do capitão Antônio Martins de Almeida, nomeado interventor federal no ano anterior. Em 1935, finda essa interventoria, derrotado em tentativa de eleger-se deputado federal, Vitorino deixou o Maranhão, para onde retornou dez anos depois, ao término da ditadura de Vargas, em 1945. Então, uniu-se a políticos tradicionais sustentados pelos coronéis da velha ordem social, participou da vitoriosa eleição do Marechal Dutra à presidência da República e elegeu-se deputado federal. Em seguida, com mão-de-ferro, fez-se senador e passou a dominar a política local impondo seus prepostos em sucessivas eleições de governadores, até o ano de 1965.

Quais as mais notáveis diferenças e semelhanças de Benedito Leite e Vitorino? Quanto às prováveis diferenças, a mais evidente talvez seja a de nível de instrução e cultura. Porém, as semelhanças são inúmeras: inadmissão de questionamentos no exercício da chefia; rudeza no trato dos adversários políticos, com adoção prática do princípio quero, posso e mando; escolha pessoal e inquestionável imposição de apaniguados para funções políticas e administrativas; decisão unipessoal sobre uso de valores e bens do Estado; controle absoluto da hierarquia do Judiciário e dos cartórios; decisão sobre o atribuição de patentes militares; uso arbitrário das polícias militar e civil ; intolerância à liberdade de opinião, sobretudo na imprensa e nas escolas (São fatos históricos as invasões e o empastelamento de jornais, o espancamento ou assassinato de jornalistas, a perseguição a professores e estudantes que se não submetessem à prática arbítrio, do autoritarismo e da truculência, razões para a fuga de centenas de intelectuais e técnicos para outros Estados); alistamento eleitoral e realização de pleitos sob fraude; perseguição, intimidação e coação de eventuais adversários, entre outras. Fato é que, descartados os anos do regime ditatorial de Vargas, o Maranhão viveu sob o discricionário jugo desses dois políticos, em tudo semelhantes ou iguais, sobretudo quanto aos métodos de dominação que adotaram, como regista a História.

No período de 1945 a 1965, a tradicional economia maranhense estagna, a lavoura algodoeira e a indústria têxtil. do final do século 19, colapsam, obsoletas e sem mercados. São substituídas pela coleta do babaçu e a elementar extração de seu óleo, em rudimentar processo industrial de ínfimo valor agregado, cujo destino foi idêntico ao das fábricas têxteis.

Todavia, entre os anos de 1940 e 1960, exuberante fluxo migratório duplicou a população maranhense, de 1.235 mil para 2.492 mil habitantes, atingindo cerca de 3.000 mil em 1965. Na Capital, ocorreu fenômeno idêntico: a população cresceu de 85 mil para 160 mil habitantes.

Tal fenômeno demográfico ocasionou substancial alteração estrutural no sistema de produção e na composição da sociedade, a saber : 1. O deslocamento das atividades agroextrativistas e da pecuária extensiva em áreas ribeirinhas, seculares redutos político-fundiários do antigo coronelismo, criando novos centros urbanos e uma nova economia primária e mercantil nas terras altas dos divisores d’água dos grandes rios, ou em frentes pioneiras na pré-Amazônia, áreas essas politicamente livres do latifúndio; 2. O despontar de uma classe média no interior, composta de médicos, advogados, professores, e, sobretudo, de pequenos e médios comerciantes que libertaram os camponeses do vil sistema de aviamento, em barracões de escambo, vigente nos latifúndios; 3. O surgimento, em São Luís, de dezenas de aglomerações humanas em áreas suburbanas, situadas nos alagados de maré no entorno do centro histórico da capital, nas quais cumpriam atroz pena da sobrevivência entre 80 e 100 mil pessoas, desassistidas dos mais elementares serviços públicos de educação, saúde e transporte, sem emprego fixo e certo, bivacadas sobre palafitas, em incrível reprodução antropológica de nucleação de primitivas populações lacustres da Baixada Maranhense.

Assim é que, desde a Colônia até meado dos anos 60 do Século XX, a sociedade e a economia maranhenses podem ter a representação gráfica de uma única linha horizontal, quase perfeitamente reta, com raríssimos pontos de desequilíbrio que representariam episódicos surtos de desenvolvimento, entre longos lapsos temporais de persistente e invariável monotonia socioeconômica. Mesmo estes, decorrentes de causas exógenas.

Em 1964, o quadro político-institucional do Estado nacional mudou, de modo abrupto e radical. Sob o regime de governo militar então imposto, aliados políticos tradicionais do PSD e PTB - entre os quais Vitorino Freire -, foram desalojados do poder central, facilitando o seu acesso a grupos da antiga oposição, em maioria udenistas, contexto no qual o velho chefe-político local perdeu sua temida autoridade, sua proverbial prepotência e a sua representatividade como força eleitoral.

No âmbito estadual, seus antigos correligionários, sem mais razões para os paralisantes temores de duras represálias, que os mantinha arrebanhados, abandonaram o cacique decaído, reuniram-se em bloco chefiado pelo governador Newton Bello, e mobilizaram antigos feudos para as iminentes eleições gerais.

Nesse mesmo passo, o governo federal, dotado de poderes legais excepcionais, determinou implacável e eficiente ação saneadora dos seculares vícios do processo eleitoral no Maranhão: Foram expurgados os registros cartoriais infestados de eleitores-fantasmas; Do Judiciário local, foram excluídos os facilitadores e perpetradores de práticas eleitorais fraudulentas; Estabeleceu-se ambiente civil de absoluto respeito às normas legais e de garantia à expressão da vontade eleitoral dos cidadãos.

Tais condições favoreceram o surgimento da consentida liderança de José Sarney, então ativo deputado federal, integrante da ala mais jovem da UDN, dotado de invulgar carisma pessoal, bacharel em Direito de sólida formação humanística, que, apoiado na promessa da construção de um Maranhão Novo, com sua administração voltada para o desenvolvimento econômico e social, instauração de liberdades e igualdade de oportunidades sem quaisquer distinções, sobretudo para o imenso contingente de conterrâneos secularmente excluídos dos direitos de cidadania, ganhou a simpatia popular nas cidades e nos campos.

Portando a bandeira da justiça social, do desenvolvimento e da modernidade, Sarney reuniu em torno de sua candidatura não poucos políticos descontentes do que havia resultado de seguidos anos de domínio vitorinista, atraiu a simpatia e o apoio da classe média que recém despontara no interior, catalisou a preferência da maioria de profissionais liberais, e empolgou a enorme massa de trabalhadores rurais auto-alforriados da sujeição aos grandes proprietários de terras. Fere-se o pleito em 1965 e, logo no primeiro turno, o nome de José Sarney surgiu das urnas consagrado governador do Maranhão pelo voto livre da maioria absoluta do eleitorado. Eclode e firma-se, assim, de modo inquestionável, vigorosa e carismática, a primeira e única liderança política maranhense verdadeiramente democrática, no decurso do extenso período de setenta e seis anos, desde a proclamação da República.

Recém empossado, o governador comandou e dirigiu a administração pública para o cumprimento de funções totalmente opostas àquelas para as quais sempre dele se serviram ao longo da História : o Estado perdeu a feição de poderoso instrumento usado para exercício e manutenção do poder pessoal de governantes e foi transformado em instrumento de ação pública democrática para a execução de programas de desenvolvimento social e econômico de interesse geral.

Para auxiliá-lo na execução da política de modernização do Estado, governador instalou em seu gabinete uma assessoria técnica integrada por ex-companheiros de campanha eleitoral, acrescida de especialistas em economia e desenvolvimento que se achavam fora do Maranhão, dentre estes, conceituados quadros da SUDENE, por ele convocados sem preconceitos de filiação partidária, militância política ou convicções ideológicas.

Formulado, na Assessoria Técnica, o diagnóstico do Maranhão e fixadas as diretrizes de ação para os quatro anos do mandato, o governo adotou, como instrumento básico de planejamento e controle, o Orçamento-Programa anual (Criação da CEPAL, recém-posta em prática na SUDENE), no qual se definiam os programas, projetos, obras ou atividades a executar no exercício. Deu-se no mesmo passo a reciclagem e treinamento do funcionalismo público, a reforma estrutural dos órgãos da administração direta e indireta e a criação de novos entes (Autarquias, Faculdades e sociedades de economia mista) necessários à implementação das ações contidas no Orçamento-Programa.

O resultado desse esforço de modernização e planejamento da ação de governo superou as expectativas, de tal modo que, ao fim de quatro anos, das densas brumas de um penoso passado de arbítrio e autoritarismo político, de pasmaceira econômica e monotonia social surgiu um Maranhão Novo. Todavia, é exigência da verdade e da História dizer-se que o feliz êxito desse período deve-se, sobretudo, à compostura democrática do Governador, ao seu espírito tolerante e pacifista, ao modo sereno e firme como manteve as mais importantes funções do Estado infensas a eventuais abordagens pouco republicanas, ao uso impessoal do poder público e à imposição de sua legítima autoridade para afastar influências indevidas no sistema de planejamento e controle.

Finalmente, em janeiro de 1970, após quatro anos de perseverança e trabalho diuturno, restou inaugurado o mítico MARANHÃO NOVO!

Do que daí se seguiu, dirá a História!

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