Artigo

A graça do comum

Atualizada em 11/10/2022 às 12h23

De vez em quando Deus me tira a poesia. Olho pedra, vejo pedra mesmo. O mundo, cheio de departamentos, não é a bola bonita caminhando solta no espaço.

Adélia Prado

Lembrei da fala da poetisa mineira a propósito da leitura (agradável) do livro “Se você para, você cai”, de autoria de meu confrade, da Academia Nacional de Medicina, J.J. Camargo, que maneja o bisturi com a mesma precisão e maestria que o faz com a caneta. Adélia - evocando Drummond - se mostra dependente do encanto poético para enxergar no mundo aquilo que os olhos, acostumados, concretos com o gris do dia a dia, não conseguem enxergar. A metáfora é forte, como a dizer: olho o problema, vejo o problema mesmo. Não há como fugir do dilema para a solução.

Lembrei porque identifiquei esse dom em J. J. Camargo, capaz de traduzir a relevante experiência cotidiana de milhares de médicos em algo relevante - nas páginas do livro é impossível não se emocionar com as histórias que ele relata a partir da relação com seus pacientes. Alguém que alcançou a graça do comum - que é o de ver algo diferente e relevante onde os outros não conseguem enxergar. Ao relatar diversas histórias vivenciadas em décadas de clínicas, imediatamente o escritor tece um fio invisível que a todos emaranha, principalmente aos discípulos de Hipócrates. Exemplos? Quem nunca se deparou com uma Georgina, personagem de uma de suas crônicas, mãe até o último instante, capaz de perdoar a ingratidão e ausência do filho na hora da morte? Ou do sábio conselho do personagem Herculano, que combinou tristeza e inverno numa frase de advertência ante a proximidade do fim? Ou do drama vivido pelo casal Miguel e Amantina ao se deparar com a possibilidade da separação que a morte traz?

Para além de suas experiências no atendimento, J. J. Camargo também nos leva a refletir sobre temas instigantes como a tristeza, a dor, a saudade, a condição humana, a efemeridade que une a todos nós numa certeza inexorável. Acerca da amizade - dádiva que deve ser cultivada em todas as fases da vida - o escritor adverte sobre a fragilidade das relações virtuais e da (falsa) sensação de que ela substitui o encontro real, o abraço e o olhar sinceros.

Suas andanças fora do país, sua paixão pela sétima arte e pela literatura deram-lhe um cabedal para (re) interpretar fatos e (re) significar sensações e leituras acerca do mundo, o que permite ao leitor da obra um agradável passeio, inclusa uma boa dose de emoção e, às vezes, gargalhadas evocadas por tiradas bem-humoradas.

Assim como meu confrade, cultivo um ouvido atento e olhos argutos, acessórios indispensáveis em todo bom consultório, acessórios estes há muito esquecidos pelas novas gerações e que precisam ser urgentemente resgatados. Sem contar, é claro, com a boa dose de afeto que deve acompanhar toda prescrição e recomendações médicas.

Rogo a Deus a mesma dádiva que concedeu a Drummond, Adélia e J. J Camargo: a de enxergar poesia onde todos só veem pedras. A de não perder o encantamento com a matéria bruta que se revela tesouro para os cultivadores da paciência. E a ter a capacidade de se surpreender com o comum, com o ordinário visto que cada dia é irrepetível, que cada história é única, que todo ser humano é capaz de fazer feitos extraordinários.

Natalino Salgado Filho

Médico, doutor em Nefrologia, ex-reitor da UFMA, membro da ANM, da AML, da AMM, Sobrames e do IHGMA

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