A formação do Anjo da Guarda

Os pés de bicho que viraram estrangeiros no Anjo da Guarda

A história de uma das comunidades mais fortes da Ilha, o Anjo da Guarda, que completa 51 anos de existência este ano; curiosidades marcam o bairro tradicional

Thiago Bastos / O Estado

Atualizada em 11/10/2022 às 12h25
As primeiras casas onde moravam os  pés de bicho
As primeiras casas onde moravam os pés de bicho (Casas Anjo da Guarda)

Para entender a formação e consolidação do Anjo da Guarda, é necessário fazer uma viagem no tempo. O dia era 14 de outubro e o ano, 1968. Eram aproximadamente 18h, quando um jovem ainda franzino chamado Herbert voltava de mais uma de suas “peladas” tradicionais na beira da maré – onde hoje fica o Aterro do Bacanga – quando percebeu que várias casas haviam sido incendiadas no Goiabal. Do fogo, da tragédia e da dor (e até da morte de “Doninha”) nasce um dos bairros mais tradicionais da capital maranhense. O Anjo da Guarda surge da coragem de desbravadores e da intervenção pública de antigos moradores da área considerada um dos berços da cultura de São Luís.

O tal anjo, até “abrir suas asas” para a cidade, esperou a iniciativa de 85 famílias. É o número apontado pelo jornalista, poeta e pesquisador Herbert de Jesus Santos ao citar o grupo que ocupou pioneiramente a área atualmente ocupada pelo bairro. Em sua obra “Um terço de memória, entre Anjo da Guarda e Capela da Onça, e os heróis do Boi de Ouro”, o poetinha – que presenteou O Estado com o exemplar de seu livro – exalta e esclarece com riqueza de detalhes e “causa própria” o que aconteceu no dia do incêndio.

Ao contrário do que foi divulgado por jornais da época – que chegaram a relatar centenas de mortes –, apesar dos danos aos casebres do antigo Goiabal, faleceu apenas uma mulher, de nome popular “Doninha” (que teve o corpo tomado pelas chamas, após cair na lama com a quebra de uma ponte improvisada por onde passava durante o incêndio). As demais pessoas, sem eira nem beira, foram para o outro lado do Rio Bacanga e se mudaram para uma área descrita como “só mato”.

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Esse “só mato” recebeu os “órfãos” de residência e originou o antigo bairro Anjo da Guarda. De 1968 a 1969, os moradores viveram nesta área somente com o básico, tentando por conta própria reconstruir suas casas. A partir da década de 1970, pela intervenção do poder público e iniciativa da empresa que construiria – anos mais tarde – o que é conhecido hoje como Barragem do Bacanga, a comunidade do Anjo da Guarda se consolida.

Heróis do Anjo
A comunidade do Anjo da Guarda deve a sua formação e consolidação como bairro tradicional a partir da iniciativa de heróis, como Sabujá, Pedro Cego, Marechal, Mata-Gato, Cambota, Pico, Sassarico, e tantos outros. Alguns destes “baluartes” estão vivos e O Estado os procurou para ouvir sobre o começo de tudo.

Com seus 83 anos, sendo quase 50 vividos no Anjo, seu Sabujá – como é mais conhecido - recebe O Estado e, de forma espontânea, conta como era o bairro no começo. “Ah meu filho, era só mato, não tinha nada! Eu nem queria vir para cá”, disse.

Seu Sabujá – que não conta a origem do apelido nem por decreto – vivia com a família em uma casa simples, próxima à atual Capela de São Pedro. Ele não foi diretamente atingido pelo incêndio no Goiabal, mas se lembra do que aconteceu. “Isso foi falado demais na cidade, todo mundo só sabia disso, mas graças a Deus minha casa não foi atingida. Até aquele instante, eu só queria saber de pescar, ficar com meu povo e curtir a minha Madre Deus”, disse.

A coisa passou a mudar quando a esposa de seu Sabujá – Jacira Ferreira (com 81 anos hoje) – teve a ideia de morar naquele “só mato”, até então ocupado por uns tais “pés de bicho”. “Eu não queria ter vindo, não. Eu falei pra Jacira: muié, o que vou fazer naquele fim de mundo do outro lado do rio? E cá estou até hoje aqui”, disse ao se referir ao Anjo.
Seu Sabujá – que ama e conhece o Anjo com a palma da mão – se incomoda até hoje com essa história de “pé de bicho”. Segundo ele, era o apelido de quem vivia no Anjo. “Como era só mato e tinha muito bicho no pé mesmo, a gente era chamado assim. Até hoje sou invocado com isso”, disse.

O começo, para seu Sabujá e outros moradores, foi difícil. Até receberem, nas proximidades, os serviços básicos de saúde, assistência social e educação, passaram-se alguns anos. “Só tinha as casas. E mais nada. Para a gente ir para o outro lado, tinha que ir pelo Maracanã”, disse Pedro Batista, um dos “fundadores” do Anjo.

Quem se referir a Pedro Batista, no Anjo da Guarda, provavelmente vai ficar rodando o bairro feito “barata tonta”, sem achar ninguém. Mas, se falar Pedro Cego, será orientado a ir a uma pequena casa no bairro, onde ele vive com a esposa, filhos, netos e bisnetos.

Pedro Cego teve ligação direta com o incêndio no Goiabal. Por causa da força das chamas, ele – aos 13 anos – se mudou para o bairro “só mato” e virou um “pé de bicho”, com orgulho. “Aqui não tinha nada. Eu mesmo tinha hora que me perguntava: Meu Deus, como vou viver num fim de mundo desses?”, afirmou.

O desenvolvimento
Após consolidar-se como bairro, com a ação da Comissão Estadual de Transferência de População (Cetrap), órgão ligado à gestão pública à época, o Anjo da Guarda começou a receber os serviços básicos de fornecimento de água e energia elétrica. Com o tempo, surgiram ruas e avenidas.
A partir da iniciativa do então prefeito Epitácio Cafeteira, os pontos de referência receberam denominações de países (Dinamarca, França, Argentina, Costa Rica e outros). Por causa da referência aos nomes das vias, os moradores do Anjo ganharam importância e renome e receberam a referência de “estrangeiros”. “Não há um morador do Anjo que não goste de ser chamado de estrangeiro”, disse Herbert.
Na década de 1990, o Anjo da Guarda passou a ser conhecido como distrito constituído por seis bairros. Ainda de acordo com dados do IBGE, aproximadamente 20 mil domicílios estão fixados no bairro. Destes, 222 não dispunham de qualquer acesso à fonte de abastecimento ou rede geral de distribuição. l

Outros heróis

O nascedouro e consolidação do Anjo como um bairro também se deve a outros heróis: como Dico Barata. Ele foi presidente da União de Moradores da Madre Deus e deu conforto e assistência às famílias. Outro nome citado por Herbert Santos em sua primorosa obra sobre a história do Anjo da Guarda é Zé Prego. Ele era o motorista do buzão que fazia linha Vila Maranhão/Centro e que também transferiu moradores sem casa do Goiabal (via Maracanã) para o antigo Anjo.

O nome Anjo da Guarda se deve a um antigo sítio, de mesmo nome, localizado na atual região. Para historiadores, o marco zero do bairro é a Rua Palestina, que fica nos arredores da conhecida Praça da Ressurreição.

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