O mito e a lenda

7ª e 8ª gerações vivas de Ana Jansen: mito é muito exagerado, avaliam

Personagem à frente de uma sociedade tradicional, da sua época, Ana Jansen ainda é capaz de surpreender quem decide pesquisar acerca de sua biografia

Thiago Bastos / O Estado

Atualizada em 11/10/2022 às 12h26

[e-s001]Uma mulher que virou len­da e, para alguns, carrega uma imagem pesada e exagerada sobre si. Ana Joaquina Jansen Pereira tem sua história contada por quem conhece. Uma lenda, que começa a ser construída a partir de dores pessoais, de sofrimentos, e se consolida a partir de uma postura em uma sociedade que não admitia perversões e adepta das mais fortes tradições familiares. Se por um lado Ana Jansen traz consigo histórias notadamente marcadas por denúncias de torturas aos seus escravos, por outro admiradores de sua biografia baseiam-se em seus posicionamentos políticos, que negavam vínculo com cortes imperiais e rejeitavam títulos de nobreza.

Relatos de nomes importantes da pesquisa local, como Antônio Noberto, por exemplo, apontam para uma Ana Jansen marcada principalmente por suas polêmicas, como o episódio dos “penicos” e pelo distanciamento com os seus trabalhadores, em especial, com seus escravos. O episódio mais marcante envolvendo Jansen diz respeito ao dia em que ela, negando-se a colocar os pés na lama nos arredores de uma de suas muitas propriedades, exigiu que os escravos deitassem no chão e fizessem uma espécie de “ponte”. O fato teria acontecido em um de seus imóveis, conhecido hoje como Sítio do Tamancão.

Mas, dentre os fatos menos conhecidos de Ana Jansen, estão participações em guerra e crença religiosa. Antes de entender as escolhas da personagem, é preciso debruçar-se acerca de suas atitudes e histórias. Ana Jansen nasceu no fim do século XVIII, mais precisamente no ano de 1797. De origem inicialmente pobre, ela começou a sofrer na família a rejeição que passaria depois perante boa parte da sociedade ludovicense.

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Pesquisas da própria família de Ana Jansen dão conta de que, mes­mo com a origem considerada humilde, a comerciante registrou parentes europeus. O avô materno foi Cornelius Jansen Muller, um comerciante e financiador de origem do continente mais rico, que construiu riqueza.

A prática de emprestar dinheiro a juros altos, condenada por boa parte na sociedade, levou a uma série de perseguições sofridas por Cornelius, que foi morto. O dinheiro do avô foi “depenado” por populares. Alguns anos depois, os familiares de Ana Jansen partiram para o Brasil. Em São Luís, as gerações da família constituíram moradia, mas sem a pujança de Cornelius.

Incomodada, Ana Jansen foi a representante da família que faria este contexto mudar radicalmente. An­tes disso, a personagem passou por um conflito pessoal. Ao engravidar, a mãe exigiu que Ana Jansen se mudasse para o interior. “Onde já se viu? Uma mãe solteira, nesta épo­ca?”, dizia quem defendia a exigência.
Ana Jansen acatou a medida mas, antes mesmo de ter filho e com um barrigão, regressou a São Luís, para revolta maternal.

[e-s001]Nasce o "mito" Ana Jansen
O mito acerca da história de Ana Jansen começou, na prática, a ser construído a partir do período em que ela decidiu se casar com o coronel Isidoro Pereira, até então “o homem mais rico de todo o estado do Maranhão”. Isidoro, antes do altar, era amante de Ana Jansen e, mesmo casado, teve com Donana três filhos. A então companheira oficial do coronel não podia ter e Ana Jansen era responsável, neste caso, pela procriação.

Com a morte da esposa de Isidoro, Ana Jansen se casou com o coronel, que, anos depois, faleceu. É neste intervalo histórico que Donana adquiriu, de fato, poder perante a sociedade e ganhou status, em um contexto que já criara rejeição à pessoa de Jansen. "Ela [Ana Jansen] já tinha uma rejeição grande, pelos seus costumes e opiniões. Só que desta vez é diferente e ela [Ana Jansen] passou a ter poderes que antes não tinha", disse Marcos Ponts, descendente de Ana Jansen, e que ainda reside na capital maranhense.

Por causa da ascensão financeira, Ana Jansen acumulou propriedades, em especial, moradias e escravos. Quanto aos imóveis, Ana Jansen não registrou residência fixa. Várias casas foram registradas, na Ilha, em seu nome. Algumas delas estão em bairros como Vinhais, Anil e outros. Os mais conhecidos estão na região central de São Luís.
Um dos mais suntuosos está na Rua Rio Branco, no Centro. De esquina, e ocupando bom terreno, o imóvel chama a atenção pela preservação do conjunto de azulejos e estilo em sobrado. Atualmente, no local, O Estado constatou que funciona uma clínica de olhos. Na fachada, ainda há referência a uma data, de 1860. Não se sabe, precisamente, se a referência foi fixada ain­da quando Ana Jansen tinha ligação formal com a residência.

Além dos casarões, Ana Jansen também herda propriedades rurais, como a Fazenda Santo Antônio. Aliás, o nome da propriedade não é aleatório, como veremos a seguir.

Ana Jansen política
Além de zelar pelo próprio patrimônio e de colecionar inimigos, por sua personalidade forte e verve contestadora, Ana Jansen também enveredou pela política. Em uma sociedade ainda predominantemente imperial, voltada para os interesses da Corte, em especial, portuguesa, Ana Jansen decidiu fazer parte do lado contestador e agregou-se aos bem-te-vis. Ela deu vida ao partido e passou a comandá-lo no estado.

A família de Ana Jansen reconhece a história de que ela destituiu um governo. "Ela chegou a invadir o Palácio [ dos Leões] e retirou o gestor", disse Marcos Ponts. Seu período contestador custou caro para ela. Foi a partir daí que Ana Jansen passou a sofrer com perseguições. A resposta? A personalidade não a deixava se encolher e Ana Jansen passou a defender o que ela concluía como de "interesse" do estado.

Ana Jansen e a guerra
Ana Jansen também foi uma incentivador das forças de estado de combate às guerras. No auge de seu poderio financeiro, ela foi a maior financiadora da chamada "Guerra do Paraguai". De acordo com a história oficial, o conflito é considerado o maior conflito armado da história da América do Sul e aconteceu na segunda metade do século XIX, mais precisamente entre os anos de 1864 e 1870.

Segundo a história oficial, o Império do Brasil lutou contra o que especialistas chamam de supremacia sul-americana. Além de “Guerra do Paraguai”, o fato também foi denominado de “Guerra da Tríplice Aliança”, na Argentina e no Uruguai. Ana Jansen, neste contexto, desejava que o país tivesse bom desempenho. Várias foram as doações de Jansen para as forças expedicionárias. De certa forma, sua ajuda também contribuiu para o desempenho nacional, segun­do análise da época, exitoso no conflito.

A lenda “Ana Jansen”
São várias as lendas que permeiam o nome de Ana Jansen. Uma delas encaminha que a mulher que marcou época teve um verdadeiro castigo: foi comandada e vagar eternamente pelas ruas da cidade. Segundo reza a “boca grande”, em noite de sexta-feira e de lua cheia, o fantasma da rica comerciante é visto por ruas do Centro Histórico. E, o que é pior, além da tal assombração, as mulas que puxam a carruagem jorram línguas de fogo e são conduzida por um negro decapitado. Uma imagem de horror!

[e-s001]Tem gente que acredita. Quem não acredita jura que não passa a certas horas no Centro para não pa­gar para ver. O certo é que esta e outras lendas com o nome de Ana Jansen ainda incomodam seus familiares. “A construção de uma lenda em meio a Ana Jansen, de certa forma, é também para colar uma imagem negativa, já que na história da humanidade todas as mulheres que tiveram a verve, a característica de contestação tiveram este estigma”, disse Marcos Ponts.

E ainda tem mais um detalhe da tal lenda, que também incomoda a família da própria protagonista. Quem encontrar o fantasma é “obrigado” a rezar uma oração pela alma da senhora. E ainda recebe dela uma vela acesa. “Este tipo de imagem, de uma assombração ou de algo macabro, é uma maneira de desvalorizar sua imagem. É preciso conhecer verdadeiramente a história dela, quem foi Ana Jansen”, afirmou.

O túmulo de Ana Joaquina
No ano passado, em artigo nas redes sociais, o historiador e vice-presidente do Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão (IHGM), Euges Lima, divulgou documento inédito – com base em páginas do jornal “A Imprensa”, de 1857, em que é esclarecida a origem do túmulo e as circunstâncias da morte da Ana Augusta Jansen Ferreira, filha de Ana Joaquina Jansen Pereira – a lendária Ana Jansen.

Até então, não havia detalhes acerca do falecimento de Ana Jansen. Em artigo publicado em maio do ano passado, Euges menciona Dunshee de Abranches que, em seu livro “O Cativeiro”, de 1941, cita como foi o casamento de Ana Augusta às vésperas da Balaiada (movimento revolucionário do século XIX que questionava o poder vigente à época).
Segundo o exemplar, “[...] naquele dia 15 de janeiro de 1839, realizara o casamento de suas duas filhas, Ana Augusta e Ângela Isidora com o Dr. Manoel Jansen Ferreira e Inácio de Sousa Machado[...].”. De acordo com Euges, “estava também presente nesse pomposo duplo casamento no sobrado à rua Grande de fachada de azulejos, pertencente a Donana, como era popularmente conhecida, João Francisco Lisboa, aliado político, do alto dos seus 35 anos, o mais talentoso membro do partido Bem-te-vi e a mais fina flor do liberalismo do seu tempo”.

O que se sabia era que o corpo de Ana Augusta Jansen estava sepultado na entrada da Capela Bom Jesus dos Navegantes na Igreja de Santo Antônio, Centro. E ainda está, mas não é o único. A família considera sim a versão de que Ana Joaquina Jansen, a mais famosa, está com os restos mortais ao lado da filha. Ana Joaquina Jansen, para quem não sabe, era devota de Santo Antônio. Várias das propriedades e outros objetos tinham a referência ao santo.

Ana Augusta Jansen casou-se aos 18 anos, com o dr. Manoel Jansen Ferreira, seu primo. Ela faleceu aos 33 anos, em 1857, após dar à luz seu décimo primeiro filho, confirme cita a história oficial. A filha de Donana morreu em decorrência de complicações pós-parto, mesmo após os esforços de uma junta médica composta por cinco profissionais para salvá-la.

A história dos penicos
Ao contar, digamos, este fato menos higiênico da história de Ana Joaquina Jansen, é necessário remeter a algumas palavras de quem verdadeiramente conheceu os fatos da cidade. O escritor Josué Montello, em “Os Tambores de São Luís”, citou o fato com preciosidade. Contou o autor que o “Comendador Meireles” - denominado de “inimigo de Donana” - preparou um milheiro de penicos de louça com “a cara da velha”, conforme Montello, para vendê-los. Assim que Donana soube do fato, mandou comprar os penicos na loja do tal comendador e, quando teve certeza de que somente ela [Jansen] os possuía, mandou escravos urinarem e defecarem nos recipientes. O resultado? Os excrementos foram lançados na porta da loja do “tal comendador”, que depois disso não se meteu mais com Ana Jansen.

A oitava geração de Ana Jansen
Em meio à conversa de O Estado com Marcos Ponts em sua residência, entrou no recinto a jovem Olívia, de apenas 5 anos. Ela é filha de Marcos, ou seja, é a oitava geração pós Ana Jansen. Segundo o pai, ela tem conhecimento de parte da história de Donana, mas ainda sem a noção plena.

"É nova, mas vai conhecer”, garante o pai. A simpática Olívia fez questão de acompanhar toda a reportagem. Sem dúvida, a jovem terá muito tempo para conhecer a história da parente “mais famosa”.

SAIBA MAIS

Josué Montello
Trecho: “Os Tambores de São Luís” - Capítulo 1

(sobre os tais penicos)

Inimigo de Donana Jansen, com quem vivia às turras, o Comendador Meireles tinha mandado preparar na Inglaterra, para vendê-los quase de graça, um milheiro de belos penicos de louça, com a cara da velha no fundo do vaso. Donana Jansen soube do fato e suportou com paciência o riso da cidade. Não reagiu logo: deu tempo ao tempo, enquanto ia mandando comprar, aos dois, aos três, às dezenas, na loja do Comendador, os penicos com seu retrato, até ter a certeza de que, agora, sim, só ela os possuía.
Um cheiro insuportável de mijo podre desprendia-se de um vaso à parte, por sinal que maior que os outros, quase o triplo, e coberto com uma tampa também de louça.
- E esse aí? - quis saber Damião.
- Minha sinhá deu ordem pra despejar o mijo dele na cabeça do Comendador, se ele aparecer pra tomar satisfação.
E sem interromper as pancadas seguras, o negro abriu para Damião a dentadura farta, que lhe encheu a boca feliz, rematando com este comentário, entre um penico e outro:
- Donana Jansen não é gente. Tou cansado de dizer. Quem se mete com ela tem sarna muita pra se coçar. Ora se tem!

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