Homenagem

Três anos sem Nauro Machado

Para marcar a data, O Estado do Maranhão republica texto do ensaísta gaúcho Donaldo Schüler originalmente publicado em 1983 e que fala sobre um desabafo do poeta maranhense

Donaldo Schüler

Atualizada em 11/10/2022 às 12h27
O poeta maranhense Nauro Machado teve uma rica produção literária
O poeta maranhense Nauro Machado teve uma rica produção literária (Nauro Machado)

Para marcar a data, O Estado do Maranhão republica texto do ensaísta gaúcho Donaldo Schüler originalmente publicado em 1983 e que fala sobre um desabafo do poeta maranhense morto em 2015

Hoje faz três anos que Nauro Machado faleceu. Em artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo, dia 5 de junho de 1983, o notável ensaísta gaúcho Donaldo Schüler destaca a pertinência do desabafo deste poeta que, “ameaçado pelo abismo”, considerou a “poesia desnecessária”, isto é, “desnecessária por não impedir a corrupção, a queda, o ol-vido.” E acrescenta: “Não surpreende que a consciência do apocalipse chegasse à intensidade que lhe entende Nauro Machado, numa das regiões mais sofridas do Terceiro Mundo, sobre quem pesa o ônus maior dos nossos desacertos. Por esta vereda, a poesia proclamada desnecessária pelo poeta volta a reconquistar o espaço da necessidade”.

A poesia reconquista o espaço da necessidade

Donaldo Schüler *

Ufanistas fomos desde o princípio, até mesmo antes, porque os descobridores vieram para estas bandas com as retinas cobertas pelas cores do paraíso e viram o que quiseram ver, o Eldorado, que tinha alimentado sonhos europeus por milênios. Quatro séculos de conquista e exploração ainda não foram suficientes para nos ensinar o limite preciso entre o sonho e a realidade. Mesmo nas horas mais amargas ouvimos dos que nos governam paradisíacos acalantos de floração tão rica em nossas letras.

O ufanismo é rebatido por outra linhagem, que enraíza no remoto Gregório de Matos e por meio de Basílio da Gama, Machado de Assis, Drummond, para só indicar alguns nomes de referência – rejuvenesce na poesia do maranhense Nauro Machado, o qual, com “O cavalo de Tróia”, publica o vigésimo-primeiro volume de poesias. Pelas referências do livro, o vigésimo-segundo já se encontra pronto. O poeta iniciou esta sua fecunda trajetória em fins dos anos 50, quando a pregação das vanguardas começava a dar sinais de exaustão. A exaltação ufanista que em uma de suas vertentes deriva para a poesia pura, deliberadamente alheia a escória do cotidiano, voltou a ser denunciada em data recente (1975) por outro maranhense, Ferreira Gullar, em “Poema Sujo”, numa quadra da nossa história em que o esteticismo de algumas obras traduzia os projetos utópicos forjados na esperança de um futuro glorioso.

Quem vê o título do último livro de Nauro Machado pode ser induzido a pensar em versos heroicos. E se engana. “O cavalo de Tróia” mostra-se livro despojado de toda heroicidade. Apanha o homem na queda a estágios profundos de impotência e incerteza. O breve poema de abertura indica bem este percurso: “Carrego meu poema mais que ao próprio corpo despido de suas vestes.”

A vestimenta comparece como índice de heroicidade. Homero esmera-se no acabamento das cenas em que os heróis se vestem para a guerra ou para as assembleias públicas. A veste desempenha relevante função social sempre. Não é sem motivo que os colunistas sociais lhe conferem destaque. Cobrir o corpo parece função completamente irrelevante, quando concorre o interesse da estratificação social.

Nauro Machado oferece corpo e poema despidos, de modo a expor as partes normalmente encobertas, despudoramente nomeadas e tocadas. Não é o erotismo a meta perseguida e sim a corrupção, a pobreza, a miséria. Tróia se delineia como símbolo corretamente eleito para o desvalimento. Não se deve reter a imagem da fortaleza inexpugnável que se manteve de pé contra um assédio de dez anos, mas a Tróia ludibriada, humilhada, fendida, despida de armas e grandeza, oferecida inerme à sanha dos atacantes. Tróia lembra São Luís, a sofrida cidade nordestina, lamentada como desnuda no há pouco citado poema de Ferreira Gullar. A nudez declina a sequência de fome, medo, solidão e a vida aviltada do emprego burocrático, artífice do nada. Tróia, símbolo da destruição, não se confina aos limites de uma cidade, abarca a vida individual e coletiva, no amplo cenário do espaço habitado.

Longe vai a época da voz triunfante de Horácio, o poeta da Roma senhorial, que dizia ter levantado com o poder da palavra um monumento mais perene que o bronze. Ameaçado pelo abismo, Nauro Machado afirma agora: “A poesia é desnecessária.” Desnecessária por não impedir, em nada, a corrupção, a queda, o olvido. Mesmo palavras simples como “pera” ou “barba”, perdem o sentido, quando pronunciadas, por ser irrevogável o mundo. Chegamos à região dos antípodas dos heróis salvos da morte e eternizados pelo poder do canto. Quais são os poderes que determinaram assim a ruína da Tróia universal com todos os que a habitam? Aqui, temores de sempre unem-se a malefícios de agora. Nauro Machado revive a intensidade do tremor, que abalou as personagens de Dostoievski desnudos ante o tribunal divino, tremor agravado pela ausência da redenção que soluciona os conflitos do romancista russo. A isto se acrescenta a desproporção dos sofredores ante a opressão hercúlea do poder econômico. Mircea Elíade já observou o revigoramento de manifestações apocalípticas na arte do Ocidente, abalado pela possibilidade de um aniquilamento bélico provocado por armas que proliferam ao arrepio dos tratados. Não surpreende que a consciência do apocalipse chegue à intensidade que lhe imprime Nauro Machado, numa das regiões mais sofridas do Terceiro Mundo, sobre quem pesa o ônus maior dos nossos desacertos. Por esta vereda, a poesia proclamada desnecessária pelo poeta volta a reconquistar o espaço da necessidade.

* Donaldo Schüler é Professor-doutor, ensaísta gaúcho

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