Ofício desvalorizado

Legislação descumprida e refúgio social: a realidade dos carroceiros

Publicada no Diário Oficial do Município em 2010, conforme divulgado à época, a Lei número 215, que dita o tráfego de carroças na cidade é totalmente ignorada e elas continuam transitando em pontes e grandes avenidas

Thiago Bastos / O Estado

Atualizada em 11/10/2022 às 12h28

[e-s001]Se a função dos carroceiros, ao longo dos séculos, ficou restrita ao uso para complemento de renda e para camadas menos abastadas, o poder público não somente reconheceu legalmente a função como deu atribuições – direitos e deveres – a essas pessoas. Uma das garantias foi dada pela administração municipal em 2010, por meio da Lei nº 215, que disciplina a circulação e o uso deste tipo de veículo na cidade. Mesmo assim, O Estado constatou que grande parte das regras do texto não é cumprida.

Atualmente, de acordo com o Código de Trânsito Brasileiro (CTB), os “veículos de tração animal” devem ser guiados pelas faixas da direita, ou seja, com a referência da guia da calçada. Essa determinação, deverá ser seguida caso não haja “faixa especial a eles destinada”. Em São Luís, não há nenhuma referência à faixa especial aos carroceiros.
Segundo o inciso três da Lei nº 215, o “tráfego de veículo de tração animal deverá obedecer à sinalização do Código de Trânsito Brasileiro”. Ainda de acordo com a legislação, em seu artigo 4º, os veículos de tração animal “deverão portar sinais luminosos”, como os chamados “olhos-de-gato”. Na capital, é praticamente impossível ver qualquer veículo de tração animal portando alguma desta sinalização.

[e-s001] Ainda de acordo com o texto, existem várias vias em que os veículos de tração animal não podem ser usados, dentre eles, as pontes José Sarney, Bandeira Tribuzi e Newton Bello; as avenidas Marechal Castelo Branco, Beira-Mar, José Sarney, Holandeses, Franceses, professor Carlos Cunha, São Luís Rei de França, Getúlio Vargas, João Pessoa (João Paulo), Guajajaras, Litorânea, Portugueses e Africanos.

Além dessas vias, ainda de acordo com o texto, a restrição também engloba a Camboa, os elevados do Café (Outeiro da Cruz), Alcione Nazaré, João do Vale, Elevados da Cohama e da Cohab. O que se vê, na prática, é um desrespeito à regra. Em várias destas vias, é possível ver flagrantes de carroças circulando livremente. As exceções à permissão de circulação dos veículos de tração animal são aqueles usados pelo Exército Brasileiro, pela Polícia Militar e aqueles usados com “prévia autorização” da Prefeitura de São Luís em eventos específicos, como cavalgada, passeios e demais atividades.

[e-s001]Curso
A capital maranhense foi a primeira a regulamentar o serviço de carroceiros no país. Esta articulação aconteceu no início dos anos 2000 e contou com a regulamentação, na ocasião, de aproximadamente 1.700 carroceiros. Eles foram habilitados em um curso organizado pela administração municipal e receberam informações, por exemplo, acerca de como deveriam se portar por exemplo ao abordarem turistas.

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Anos mais tarde, em 2010, veio a legislação nº 215 que, entre outras responsabilidades, exigia a realização de um Curso de Regras de Circulação e Sinalização de Trânsito, que deveria ser organizado de forma imediata pela Secretaria Municipal de Trânsito e Transportes (SMTT). Segundo o texto, a capacitação seria pré-requisito para que os carroceiros recebessem a Carteira de Identificação do Condutor de Veículo de Tração Animal.

Ainda de acordo com a legislação, a “autorização do condutor e do veículo e o licenciamento do veículo deverão ser renovados anualmente junto à SMTT”. Para isso, segundo a exigência, o animal “deveria apresentar boas condições de saúde, segurança e bons tratos”. De acordo com a lei, o animal deveria passar “por avaliação médica veterinária” nas secretarias municipais de Agricultura e do Meio Ambiente. Neste caso, de acordo com o texto, deveria ser proibido o uso de meios como “chicotes, pedaços de madeira, paus e outros objetos”.

O Estado questionou as assessorias das pastas municipais acerca da promoção do curso e das inspeções aos animais. Até o fechamento desta edição, não foi encaminhada qualquer resposta.

Outras cidades
De acordo com informações da Prefeitura de Imperatriz, carroceiros da cidade estão sendo cadastrados pela administração municipal. A meta do trabalho é “disciplinar a atividade”, evitando – desta maneira – o descarte irregular de entulhos e criar um serviço para garantir renda extra a eles intitulado de “Disk-carroça”. O departamento responsável pelas regras de trânsito no município da Região Tocantina, haverá ainda um emplacamento das carroças. Além da placa, os condutores de veículos de tração animal receberão o Certificado de Licenciamento do Veículo de Tração Animal (CRLVTA).

[e-s001]O dia a dia dos carroceiros: exaustão e baixa remuneração

A rotina de quem ganha a vida na função de carroceiro é desgastante e com baixa recompensa financeira. Normalmente, sua utilidade é para transporte de cargas e a atividade está relacionada às empresas que negociam materiais de construção (como areia, cimento e tijolos). Em São Luís, a grande concentração dos carroceiros é na Camboa, onde construíram informalmente uma praça – que era fixada no canteiro central da via e que recebeu popularmente a denominação de “Praça dos Jumentos”.

Nos arredores dos depósitos de materiais de construção, na Camboa, O Estado encontrou o bacabalense Francisco das Chagas. Com 65 anos, sendo mais de 10 dedicados ao transporte com animal, ele realiza de cinco a 10 viagens por dia. Em uma delas, faturou R$ 50. “Na verdade, essas aqui são três viagens em uma, pois a gente considera um preço só mas vou precisar ir e voltar três vezes para levar a carga”, disse.

Carroceiro há 25 anos, Aguinaldo Serejo lamentou – segundo ele – a falta de valorização profissional e financeira a ele e seus colegas. “A gente se mata de trabalhar e, às vezes, somente pega esculhambação no trânsito”, disse ele. O carroceiro se refere às reclamações dos motoristas, que buzinam para os carroceiros na rotina de trânsito.

Se os motoristas demonstram impaciência, os carroceiros – em alguns casos – realizam imprudências. Vários flagrantes de carroceiros andando na contramão ou em vias proibidas são comuns. Outro fator que resume a aparente ausência de reconhecimento dos carroceiros foi a extinção do sindicato que defendia os interesses da categoria. “Somente sei que fechou, só isso”, disse o carroceiro Aguinaldo Serejo.

Aspectos históricos

No Maranhão

Segundo pesquisa feita por O Estado com base em registros encontrados nos arquivos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os primeiros bondes foram vistos no território maranhense na segunda metade do século XIX, por instalação da chamada Companhia Ferro Carril. Esta empresa, de acordo com os registros históricos, colocou nas ruas e avenidas da capital maranhense uma “frota” de bondes movida à tração animal.

Os primeiros registros deste tipo de veículo na cidade mudaram a paisagem urbana da época. Em vários relatos, historiadores e de pessoas que viveram no período apontavam para o nascimento de um “novo momento” para a história ludovicense. Imaginava-se que, com a inclusão de veículos tão “modernos” para a ocasião, a cidade acompanharia a evolução dos principais centros econômicos do país. A passagem dos bondes à tração nas ruas e avenidas era comum por exemplo em vias da região Central. Há relatos de itinerários feitos por estes veículos nas ruas da Estrela, Afonso Pena, Centro Histórico, dentre outras vias.

O Maranhão, em especial, a capital maranhense passa a se incorporar às exigências da modernidade com os chamados bondes elétricos somente na primeira metade do século XX, com uma medida da Câmara Municipal que autoriza o uso do meio de transporte na cidade. Uma empresa norte-americana chamada Ulen foi a primeira a inserir bondes elétricos na cidade, em substituição aos veículos movidos por tração animal.

De trabalhadores informais a colaboradores da limpeza: a inclusão dos carroceiros no cotidiano ludovicense

Com o desuso dos veículos de tração animal, o uso de cavalos e jumentos como colaboradores do meio de transporte passou a ser restringido para membros das camadas menos favorecidas sociais. Em São Luís, esse fenômeno foi melhor observado a partir das décadas de 1930 e 1940. De acordo com o livro “Pregoeiros & Casarões”, de Antônio Guimarães de Oliveira, em 1948, por intermédio da então administração municipal da Ilha, os veículos de tração animal passaram a ser incorporados no serviço de limpeza pública da cidade.

Para o poder público, era uma forma de inclusão social e, ao mesmo tempo, uma tentativa de disciplinar o uso e a circulação deste tipo de veículo na cidade. Apesar da iniciativa, os chamados carroceiros passaram a surgir livremente e sem qualquer controle administrativo. Relato de “Pregoeiros & Casarões” aponta que, no início da década de 1970, havia carroças circulando “livremente” por vias que, até então, eram somente acessadas por pedestres.

Um exemplo deste abuso das regras de trânsito foi visto em 1974 em arquivos históricos. Em uma das fotos, é possível ver carroças com seus condutores circulando na Rua Grande que, á época assim como nos tempos de hoje, registrava grande fluxo de pessoas. Em 1975, nova tentativa do poder público de regulamentar a figura dos carroceiros e seus meios de transporte. Uma medida municipal determinava vias da cidade em que, somente nelas, era autorizada a passagem de carroças.

À época, a autorização era possível nos seguintes locais: Praça João Lisboa, ruas dos Sol e da Paz, rua de Nazaré, rua dos Afogados, rua do Egito e Jacinto Maia. Além destas, também era possível a circulação nas avenidas Magalhães de Almeida e Mercado Central. Por ora, não havia, num primeiro momento, horário específico em que as carroças poderiam trafegar.

Em 1979, registros oficiais apontavam que havia na capital maranhense aproximadamente mil carroças. Boa parte destas, neste ano, foi mobilizada novamente para integrar o sistema de limpeza da cidade. Para isso, o poder público estipulou uma única condição: as carroças e seus condutores deveriam ser sindicalizados.

Dez anos mais tarde, o então Departamento Municipal de Trânsito (DMT) se reuniu com representantes do então Sindicato dos Vendedores de Veículos à Tração Animal. O objetivo do encontro, de acordo com registros históricos, era promover uma campanha de “conscientização” quanto à proibição do uso de carroças em determinadas áreas da região central da cidade já que, apesar das regulamentações que ditavam as vias a ser usadas, a grande maioria dos carroceiros desobedecia às regras. “Era impossível não ver, com o passar do século XX, a figura dos carroceiros no cotidiano. Por isso, foram várias as tentativas do poder público em regulamentar a função. No entanto, os carroceiros insistiam em não seguir as regras, já que a informalidade era grande, ou seja, por várias vezes surgiram novos carroceiros com as dificuldades sociais”, disse o professor Antônio Guimarães.

[e-s001]Solução = Cavalo de lata

No dia 23 de maio do ano passado, o Governo do Maranhão lançou reportagem em seu site oficial relatando estudo feito pela administração pública acerca do chamado “cavalo de lata”, uma espécie de carroça do futuro movida à energia elétrica e cuja ideia precursora foi desenvolvida na cidade de Santa Cruz do Sul (RS). De acordo com a publicação, carroças movidas à tração animal seriam substituídas para gerar “qualidade de vida e condições de trabalho” aos carroceiros da Ilha. Ainda de acordo com a publicação, não havia – até então – uma data prevista para a implantação do serviço em São Luís. De acordo com ao Secretaria de Estado do Desenvolvimento Social (Sedes), até o ano passado, 540 carroceiros estavam cadastrados na Região Metropolitana em diferentes pontos (São Francisco, Cidade Olímpica e Coroadinho) para testarem o projeto. O modelo de carro proposto seria à bateria – sendo ela recarregável em tomada simples e com autonomia para percorrer até uma distância de aproximadamente 60 quilômetros. O veículo também teria um bagageiro para transportar até 500 quilos de carga. Neste caso, o custo por quilômetro giraria em torno de R$ 0,02 a R$ 0,05.

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