Vida de pescador - 2ª parte

Tendo no mar sua cura e morte, pescadores seguem na lida diária

Relação entre pescador e saúde é difícil: ele prefere pescar a tratar suas doenças, muitas vezes causadas justamente pela exposição excessiva a água e sol

Adriano Martins Costa / O Estado

Atualizada em 11/10/2022 às 12h40

[e-s001]RAPOSA - Quando teve seu barco atropelado por um navio cargueiro, Jackson Gonçalves, com 49 anos, e seu companheiro Agnaldo, com 56, passaram parte do dia e a noite inteira no mar, em cima de uma balsa improvisada, com a água salgada batendo no peito e a chuva na cabeça. Foram resgatados pela manhã, e Jackson disse que deveriam ir ao hospital pelo menos para tomar um soro e se reidratarem. Ele foi, mas Agnaldo nem passou na frente da unidade de saúde. “O hospital do pescador é o mar. Depois que a água salgada corre na veia, ele não sente nada. Só vai sentir mais tarde, quando ficar velho”, afirma Jackson.

A relação entre o pescador na Raposa e o hospital é arisca. Ele foge da unidade de saúde como um peixe-serra de uma rede serreira. Jackson mesmo diz que nunca ficou hospitalizado, e outros, até mais velhos que ele, como Luiz Alfredo Souza Moraes, que tem 61 anos, 50 só de pescaria, dizem que nunca foram a um hospital.

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Qualquer problema, complicação, eles tratam em casa ou no mar mesmo. Alfredo conta que várias vezes já ficou doente em alto-mar. Quando dá para aguentar, segue em frente até o fim da pesca. Se o caso fica grave, dá meia-volta no barco e volta para se tratar em casa.

Males de pescador
Segundo a professora Maria do Socorro Saraiva Pinheiro, pós-doutora em Ciências da Saúde pela Universidade do Porto, em Portugal, apesar da dureza que os pescadores querem passar em seus discursos, é percebido um sofrimento psíquico causado pela incerteza e a inconstância da produção.
Fora isso, ela relata que os profissionais relatam sofrerem, principalmente com dores lombares e lesões autorreferidas, sobretudo nos lábios, atribuídas à exposição solar. Mesmo assim, não fazem muita coisa para se proteger, a não ser utilizar um chapéu.

[e-s001]Além disso, segundo a pesquisadora apurou, existe uma presença significativa de micoses nas genitálias masculinas. Isso seria decorrente do fato de que esses pescadores passam a maior parte de suas vidas com as roupas úmidas. “Essa circunstância proporciona o aparecimento dessas enfermidades, o que pode ser considerada doença ocupacional”, diz a pesquisadora.

Outra pesquisa, realizada pelas pesquisadoras Sther Marie de Aguiar Rodrigues e Eloísa da Graça do Rosário Gonçalves, doutora em medicina tropical, com o apoio do Laboratório de Referência Nacional de Cólera do Instituto Oswaldo Cruz, da Fundação Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro, apontou a presença de diversos tipos de vibriões, incluindo os da cólera, em feridas cutâneas de pescadores da Raposa.

Segundo a pesquisa, essas bactérias estão alojadas no ambiente marinho e acabam por se alojar no corpo dos pescadores. “Infecções cutâneas causadas por vibrios instalam-se após exposição a ambientes aquático e as lesões começam com feridas pequenas, às vezes já preexistentes, ou por meio de lacerações causadas por acidentes no local de trabalho”, afirmam as pesquisadoras, ressaltando que a virulência das cepas isoladas a partir das amostras colhidas no meio ambiente dos pescadores é comparável àquelas obtidas de fontes clínicas.
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Ou seja, o mesmo mar que dá a vida aos pescadores também está recheado de morte. Não à toa os homens que vão para o mar relatam episódios constantes de diarreia, vômitos e febres. “A gente acha que é da água que a gente leva. Ela deve estar contaminada e acaba passando para a gente”, comenta Rogério Costa Araújo.

Mas uma situação mudou a relação do pessoal de Raposa com os hospitais: a epidemia de zika, dengue e chikungunya que se alastrou pelo Brasil no ano passado. “Não teve jeito. A gente teve de ir para o hospital por causa da zika. Não dava para ir para o mar”, afirmou o pescador Alciron Costa, irmão de Rogério.

SAIBA MAIS

Raposa é um município brasileiro do estado do Maranhão. Localiza-se na microrregião da aglomeração urbana de São Luís, Mesorregião do Norte Maranhense. Segundo o IBGE, tem 26.327 habitantes (estimativa de 2010) e cerca de 64 km² e está situado a 28 km do centro de São Luís, capital do estado do Maranhão.
O povoado surgiu nos anos 1950 e começou a se desenvolver com a chegada de pescadores cearenses, vindos do município de Acaraú–CE, que trouxeram suas mulheres, as conhecidas rendeiras de bilro. Daí, que a principal fonte de renda desenvolvida no local foram a pesca e a produção de rendas.
A construção de primeiro acesso rodoviário à região, em 1964, modificou totalmente o povoado, e as palafitas, que antes serviam apenas para moradias, se transformaram em pequenas lojas de artesanato, onde são comercializadas: toalhas de mesa, pano de prato, saída de praia, chapéus e vários outros artefatos, tradição passada de mãe para filha.
Nos últimos anos, os moradores também passaram a explorar o turismo nas ilhas de Carimã e Curupu. A primeira, inclusive, tem dunas semelhantes aos Lençóis Maranhenses e por isso são chamadas carinhosamente, pela população, de “Fronhas Maranhenses”.
O nome Raposa surgiu da grande quantidade deste animais na região. Quando os pescadores salgavam e deixavam seus peixes para secar ao sol, os animais aproveitavam quando não havia ninguém observando e comiam todo o pescado.

Doenças de pescadores

Os membros da família Vibrionaceae são habitantes naturais de ambientes marinhos e estuários e muitos podem causar infecções em humanos, que comumente apresentam quadros clínicos como diarreia, septicemia, otites, infecções de pele e tecidos moles. As infecções são, geralmente, adquiridas por consumo de alimento e água contaminada ou mais raramente, por contaminação direta de feridas cutâneas ocorrida durante o contato com a água do mar ou estuarinas.Os vibriões mais comuns nos pescadores da Raposa são: Vibrioalginolyticus - causa infecções na pele e tecidos; Vibrioparahemolyticus – causa Gastroenterite; Vibriocholerae – causador da cólera

Vida longa no mar

A maioria dos pescadores de Raposa tem mais de 18 anos de prática e iniciou a atividade por influência dos pais. Hoje, vivem com uma renda mensal média de R$ 500 a R$ 1000. Mesmo assim, dizem que a atividade é suficiente para manter a sua vida e a de suas famílias.

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