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José Sarney é ex-presidente da República.
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Tempo de Debochar

O que fazer? Carnaval é tempo de debochar. Esse verbo veio do francês débaucher, que tem um significado mais restrito, mas não escapa à largueza do deboche brasileiro.

José Sarney

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O que fazer? Carnaval é tempo de debochar. Esse verbo veio do francês débaucher, que tem um significado mais restrito, mas não escapa à largueza do deboche brasileiro. O sentido original está muito ligado aos abusos da carne, de cama e de mesa, aos pecados da luxúria e da gula. Coisa antiga, com deuses e costumes: o filho da Noite, Momo, acompanhado do filho da Húbris, Como, representam a zombaria e a festa. 

Estão, portanto, muito ligados a Baco-Dionísio e às bacanais, que já foram bacanas, em tempos em que essa palavra não existia, e papalinas, em tempos em que os papas não eram sérios. Como carne vale pode estar na origem de carnaval, sendo o período pré-quaresmal, portanto de liberação do que seria proibido, o valor da carne não pode ser superestimado: é ela que faz a festa. 

Estamos falando de deboche, num e noutro sentido, e se o sentido menos sensual não colou em Portugal, lá se usou outras palavras para versejar o duplo sentido: eram as cantigas de escárnio e maldizer, em bom uso lá na época de Dom Afonso X, o Sábio, bom poeta que não era português nem galego, sendo galego-português a língua em que se praticava essa forma de dizer mal de alguém com (pouca) elegância, usando das artes do humor, da ironia, da obscenidade e do insulto. Boa coisa, que desopila a bile negra de nosso fígado, levando com ela o mau humor e a melancolia. 

Isso dá em escarnecer, variante de debochar, de caçoar, de chasquear, de galhofar, de mangar, de motejar, de ridicularizar, de troçar, de zombar, tudo coisa muito em prática nesses dias carnavalescos. 

É para isso que se fez, do deus Momo, Rei Momo, que autoriza o deboche amplo e irrestrito — apenas, o Ministério da Saúde adverte, lembrem-se sempre de usar proteção, máscara e quejandos. 

No Maranhão havia o costume dos bailes de máscara, quando sobradões desocupados eram ocupados com orquestra, bebida e muita alegria, onde as mulheres, para proteção do seu anonimato, só entravam vestidas de dominó, uma fantasia com capuz, máscara e uma camisola de largas mangas. Elas, tendo a identidade escondida, permitiam certas liberdades que só hoje são normais. Os homens, naquela cultura mais machista impossível, já podiam usar e abusar dos costumes. 

Como máscaras e fantasias foram codificadas pela commedia dell’arte, creio que o dominó deriva do Arlequim, que rouba a Colombina do Pierrot. Aliás, segundo o nosso Noel Rosa, “a Colombina entrou num botequim / Bebeu, bebeu, saiu assim, assim / Dizendo: Pierrô cacete / Vai tomar sorvete com o Arlequim”. Mas, se a Colombina era vestida com saias duplas, a nossa Dominó fugia da roupa pesada para a geometria da roupa leve e folgada, que facilitava a mão folgada.

Debochadas e debochados eram regidos por uma regra que difere o carnaval brasileiro do italiano, no qual os belos trajes da festa de Veneza não escondem a melancolia: nós vivemos o reino da alegria, tendo Deus nos dado a graça de sermos quase todos afrodescendentes, a maioria de sangue, outros só de espírito. Pois da África veio a alegria que faz que levemos na patuscada os nossos problemas. Não falemos desses agora, para não estragar a festa: é hora de debochar. Mas, como presto um serviço informativo, fui me informar e vi no Houaiss que patuscada tem 52 (cinquenta e dois!) sinônimos! Isso que é gandaia!

Momo é muitas vezes representado com uma figura de Momo coroando um cetro, sinal talvez de que não se leva a sério. Nesse traje, além de carta de baralho, era o bufão que, nas cortes medievais, podia debochar e dizer as verdades inconvenientes. Verdade que já aparecem em Xenofonte e que existem até hoje, agora, naturalmente, com nome inglês, as stand-up comedies, com uma influência que se estende até à política. 

É verdade que a arte do deboche com palavras teve seu auge no Elogio da Loucura, cuja melhor tradução seria “elogio da estupidez”, de Erasmo de Roterdã, que riu da cara de toda autoridade do mundo renascentista, inclusive igrejas e governos, e, ao falar (mal) dos deuses, confessou sua preferência por Momo, que não era recebido nas cortes dos príncipes por nelas reinar a bajulação!

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