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Coluna do Sarney
José Sarney é ex-presidente da República.
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Olhos Negros

O poeta tem de partir e parte com o coração a sair fora do corpo.

José Sarney

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Escrevi sobre o maior poeta lírico da língua portuguesa —digo sem esquecer que é a língua de Luís de Camões. Falei do seu romance com Ana Amélia, mas devo ao leitor mais algumas palavras. Esta paixão não só resultou nos incomparáveis versos do reencontro, como foi e é uma expressão dos profundos conflitos éticos nas relações raciais no Brasil — sobre a escravidão os conflitos eram políticos, pois os escravocratas tinham convicção absoluta de sua superioridade branca; os abolicionistas, a certeza da igualdade dos humanos: “são iguais, mas há limites”.  

Gonçalves Dias, como contei, era filho de uma mestiça de quem foi retirado aos cinco anos, de quem desconhece a ascendência, cuja condição social era a da servidão disfarçada — que, para nossa vergonha, ainda hoje existe no nosso País —, e de um pai branco, que morreu quando ele tinha onze anos. Era mulato. Por sua inteligência vivíssima e por caridade estuda em Coimbra e, de volta, se aproxima da elite cultural e social de São Luís. Como letrado é acolhido em toda parte. Se hospeda na casa de um amigo. Aí vê olhos negros. Mas parte para a carreira literária na Corte. Tem 24 anos quando os Primeiros Cantos são considerados o que são, um livro excepcional. Aos 28 já publicou os Segundos Cantos e os Últimos Cantos e volta ao Maranhão. Pede: “Dá meu Deus que possa amar, / Dá que eu sinta uma paixão, / Torna-me virgem minha alma, / E virgem meu coração.” 

É acolhido na casa amiga. Lá reencontra os olhos negros de Ana Amélia, e eles penetram-lhe alma adentro. A paixão é recíproca e profunda. Total.  

É desse momento uma nota de João Francisco Lisboa: “Vi o nosso poeta Gonçalves Dias dando o braço a umas senhoras, conversando alegre e satisfeito, sem deixar rever o menor vislumbre daquela melancolia e desesperação que nos vende em seus mimosos versos. Hei de estimar que continuem as suas infelicidades.” Desejo terrível! 

O poeta tem de partir e parte com o coração a sair fora do corpo. Escreve à matriarca, sua protetora, pedindo a mão de Ana Amélia. Teme a resposta e jura respeitar a amizade sobre o amor. Recebe um ofendido “não”. Escreve ao amigo: “Amava, mas não pensei que amava tanto. […] Felizmente não soube nem saberá nunca Ana Amélia com quanto extremo era amada.” 

Prevê que ela “ficará mal comigo, ter-me-á em péssimo conceito; […] tirarei algum contentamento do único sacrifício que nisso faço, e quase superior às minhas forças, deixá-la persuadida que a requestei por passatempo, e não dizer-lhe jamais como a amo agora e como a amarei sempre.”  

Ela lhe escreve “exproba[ndo-o] duramente por não ter tido coragem nem tanto amor que o compelisse a romper com considerações de amizade e do mundo, indo arrancá-la da casa paterna” — registro de Antônio Henriques Leal, que o encontra profundamente abalado. Se morre de amor?  

Amor é vida; é ter constantemente / Alma, sentidos, coração — abertos / Ao grande, ao belo; é ser capaz d’extremos / […] Conhecer o prazer e a desventura / no mesmo tempo, e ser no mesmo ponto / O ditoso, o misérrimo dos entes: / Isso é amor, e desse amor se morre! 

Sobrevive à própria ruína.” Casam para ser infelizes. Ela com um mulato, desafio à família. O trabalho e as muitas doenças arrastam o poeta pelo mundo. Em 1855, quatro anos depois, numa rua de Lisboa, a encontra. Não podendo falar, escreve:  

Enfim te vejo! — enfim posso / Curvado a teus pés, dizer-te, / Que não cessei de querer-te, / Pesar de quanto sofri.  

Passos da morte senti; / Mas quase no passo extremo, / No último arcar da esp’rança, / Tu me vieste à lembrança: / Quis viver mais e vivi! // Vivi; pois Deus me guardava / Para este lugar e hora! 

Ela não responde. Ele tenta se explicar.  

Devera, podia acaso / Tal sacrifício aceitar-te / Para no cabo pagar-te, / Meus dias unindo aos teus? // Devera, sim; mas pensava / Que de mim t’esquecerias… 

Ele não ousara? Pagara caro. Fora profundamente infeliz, como no mau agouro de João Francisco Lisboa. 

Lerás porém algum dia / Meus versos, d’alma arrancados / D’amargo pranto banhados, / Com sangue escritos; — e então / Confio que te comovas, / Que a minha dor te apiade, / Que chores, não de saudade, / Nem de amor, — de compaixão. 

Viriato Correia a encontrou, bem velha, e ela lembrou que amara um poeta. Mas conta-se que Ana Amélia copiou os versos de Ainda uma vez, Adeus com o próprio sangue. 

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