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COLUNA

Allan Kardec
É professor universitário, engenheiro elétrico com doutorado em Information Engineering pela Universidade de Nagoya e pós-doutorado pelo RIKEN (The Institute of Physics and Chemistry).
Coluna do Kardec

O Brasil e o carro elétrico

Elaboramos sobre as necessidades do Brasil se decidir mudar sua matriz veicular para eletricidade.

Allan Kardec

Atualizada em 29/08/2023 às 15h50
 
 

O IEEE é a maior instituição do mundo em engenharia elétrica e eletrônica. Recordo-me de quando, durante o mestrado, conseguimos publicar em um de seus periódicos – meu primeiro na vida, junto com meus professores Makoto Yoshizawa e Yoshifumi Yasuda! O primeiro era mais reservado, enquanto o segundo era expansivo e adorava dar risadas – algo atípico para japoneses em geral.

Menciono isso porque o professor Robert Charette escreveu recentemente sobre um dos desafios mais complexos que o nosso planeta enfrenta e, possivelmente, um dos maiores para a comunidade de engenharia: a potencial transição para veículos elétricos (VEs). Em um e-book publicado na IEEE, ele diz que “A transição do VE é mais difícil do que se imagina”. E complementa a crítica falando de “formuladores de políticas desinformados, consumidores céticos, montadoras ávidas por lucro – e a tecnologia também não está pronta.”

Deixe-me tentar resumir brevemente o que o Charette apresentou nesse trabalho impressionante. Para começar, ele afirma que a transição para os veículos elétricos será mais confusa, mais cara e demorará muito mais tempo do que os formuladores de políticas públicas acreditam. Isso significa não apenas fabricar milhões de veículos elétricos por ano, mas também será necessário ter suporte desde o carregamento até a manutenção.

A reestruturação do mercado global de veículos elétricos envolverá trilhões de dólares em investimentos, dezenas de milhões de trabalhadores, milhões de novos veículos elétricos, dezenas de milhares de quilômetros de novas linhas de transmissão para transportar eletricidade de inúmeros novos parques eólicos e solares, além de dezenas de novas fábricas de baterias e novas minas de lítio, por exemplo, para abastecê-los.

As montadoras tradicionais estão eletrificando seus produtos pela introdução de modelos mais baratos, mas sua produção está concentrada em modelos VE de luxo de valores muito altos. Nem os modelos de carros híbridos – que têm um mecanismo elétrico de alimentação de bateria como fundamento - hoje vendidos no Brasil estão em patamares populares. A mineração das matérias-primas, é claro, pressupõe que haja capacidade de refino suficiente para produzi-las, o que, fora da China, é limitado, conforme mostra a figura abaixo.

 
 

Aumentar a cadeia de suprimentos de baterias é o "tópico mais desafiador" das montadoras, de acordo com o diretor financeiro da Volkswagen, Arno Antlitz. Essas plantas também são muito caras. A Ford e sua fornecedora coreana de baterias SK Innovation estão investindo US$ 5,6 bilhões de dólares para produzir VEs e baterias da Série F, por exemplo, enquanto a General Motors está gastando US$ 2 bilhões de dólares para produzir seus novos Cadillac Lyriq VEs.

À medida que as montadoras expandirem suas linhas de veículos elétricos, dezenas de bilhões a mais precisarão ser investidos em fábricas de baterias. Não é de admirar que o CEO da Tesla, Elon Musk, chame as fábricas de veículos elétricos de "gigantescos fornos de dinheiro".

Tomemos os transformadores da rede elétrica como exemplo. Esses componentes essenciais de conversão de tensão são projetados para resfriar à noite, quando o consumo de energia é tipicamente baixo. No entanto, com mais pessoas carregando seus VEs em casa à noite, a vida útil originalmente prevista em 30 anos para um transformador cairá – para talvez não mais do que três anos quando a adoção em massa de VEs se consolidar. 

Os veículos elétricos incorporam também sistemas ciberfísicos que utilizam sensores, atuadores, sistemas de comunicação sem fio e outros dispositivos para integrar o veículo com a rede elétrica, sistemas de tráfego e outras tecnologias. Esses sistemas computacionais permitem que os veículos elétricos sejam mais eficientes, seguros e interconectados, para que eles processem informações em tempo real e se comuniquem com outros veículos, infraestrutura de transporte e sistemas de gerenciamento de energia.

Esses automóveis demandarão capacidade maior das cadeias de suprimentos globais para produzi-los assim como um complexo de conversão de energia necessário para alimentá-los. Alcançar as metas de descarbonização requer também mudanças significativas no estilo de vida, como dirigir e voar menos, andar a pé ou de bicicleta e usar mais o transporte coletivo, além de mudanças na dieta e na conversão de eletrodomésticos movidos a combustíveis fósseis para eletricidade.

A capacidade das pessoas de aceitar essas mudanças e implementá-las será crucial para o sucesso na adaptação às mudanças climáticas e na mitigação de seus impactos. Dada a natureza geopolítica da transição, essas incertezas só aumentarão. Podemos nos perder na empolgação e na retórica otimista quando se trata de novas tecnologias, mas é fundamental manter os olhos fixos na realidade e avaliar de forma crítica as possibilidades e limitações.

A transição para os VE é um processo complexo e multifacetado que envolve não apenas questões técnicas, mas também políticas, econômicas e sociais. Em momentos como esses, lembro-me da admoestação do físico Richard Feynman, ganhador do Prêmio Nobel de Física, "para uma tecnologia ser bem-sucedida, a realidade deve ter precedência sobre as relações públicas, pois a natureza não pode ser enganada".

Com um investimento de US$ 1,2 trilhão de dólares até 2030 para o desenvolvimento e produção de milhões de baterias de veículos elétricos nos EUA, as montadoras estão justificadamente cautelosas quanto à rápida reconfiguração da indústria automobilística e às mudanças simultâneas necessárias nos setores de energia, telecomunicações, mineração, reciclagem e transporte. Isso só nos Estados Unidos. Essas mudanças são cruciais para garantir que seus investimentos sejam recompensados por lá.

Afinal, nenhum de nós, em sã consciência, nega a necessidade de um mundo de baixo carbono. Em outro artigo, defendi que o Brasil invista no carro híbrido movido a etanol. Por exemplo, não haverá necessidade de ajustes extraordinários na logística, além de ser o carro-chefe de nossa agenda ousada que há meio século contraria alguns interesses internacionais. 

Eu pergunto: e o Brasil? Já estimou seus custos da transição? Vejo alguns gestores defenderem publicamente abandonarmos a produção de petróleo e gás – ou até mesmo sugerindo que a nossa Petrobras – a maior empresa brasileira – abandone o petróleo e invista em outras fontes.

Questões: qual o plano? Qual o custo da nova matriz dos veículos elétricos? Como será a logística do abastecimento? Temos produção de baterias? E a engenharia de software, temos engenheiros ou os estamos preparando para a nova realidade? Em quanto tempo a mudança acontecerá, ou seja, qual o prazo? Passaremos a depender de algum país? Como serão financiadas a saúde e a educação, que hoje dependem dos recursos do petróleo? Ainda não vi os planos nem encontrei projetos. Pergunto por ignorância, porque não quero crer que seja um discurso improvisado.

*Allan Kardec Duailibe Barros Filho, PhD pela Universidade de Nagoya, Japão, professor titular da UFMA, ex-diretor da ANP, membro da AMC, presidente da Gasmar.

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