(Divulgação)

COLUNA

José Lorêdo Filho
Editor da Livraria Resistência Cultural Editora e chanceler do Círculo Monárquico de São Luís
José Lorêdo Filho

Em defesa da crise brasileira

É em momentos de crise aguda que se acaba, muitas vezes, por atentar aos questionamentos adequados.

José Lorêdo Filho

Atualizada em 10/04/2023 às 12h23

Pode causar espécie ao leitor apressado o título destas modestas considerações. Defender a “crise brasileira” é reconhecer, porém, não tanto a necessidade de implementação de reformas em sentido mais corrente e ordinário — a exemplo das reformas política, eleitoral, administrativa, tributária, fiscal etc. —, tal como apregoado por certas correntes de opinião dos estamentos político e acadêmico, algumas até sérias, senão que se defrontar de modo apropriado com aqueles problemas de ordem filosófica, política e histórica que nos impedem de trilhar o caminho da legitimidade e da estabilidade.

É em momentos de crise aguda que se acaba, muitas vezes, por atentar aos questionamentos adequados. Não foi senão pouco mais de trinta anos depois do golpe militar de 15 de Novembro de 1889, que pôs fim ao Império, que floresceu, no Brasil, uma gama admirável de pensadores e escritores que se ocuparam, com os rigores necessários, em meditar sobre a importância da nossa índole e das raízes de nossa cultura em face do soerguimento de um regime político estável e, na medida do possível, durável. Como, afinal de contas, plasmar na prática instituições políticas consentâneas com a mentalidade de um povo, uma vez constatada a íntima ligação entre — por assim dizer — costume público e costume privado? No dizer de um mestre do direito e do publicismo no Brasil, sabedor de nossas coisas, exarando noção elementar de filosofia política: “(...) o certo é que toda a questão de um bom sistema de governo está em observar o seguinte princípio: os quadros institucionais devem ser acondicionados à natureza humana, não considerada em abstrato, mas como historicamente se realiza nos homens pertencentes a uma comunidade ética e cultural, que é a nação.” (SOUSA, José Pedro Galvão de. Raízes históricas da crise política brasileira. Petrópolis: Vozes, 1965, p. 07).

O roteiro a seguir está como que pronto. Ele começa a ser delineado com a primeira grande revisão doutrinal dos postulados que conformaram a Constituição republicana de 1891, levada a cabo por um notável homem de Estado, de tremendo espírito realista e prático — Alberto Torres (1865 – 1917). É o chamado “apriorismo político” — a tentativa de impor politicamente um conjunto aferrado de teorias alienígenas a um povo de formação cultural absolutamente diversa, diríamos mesmo contrária, à raiz, ao sentido, ao alcance dessas teorias — o grande inimigo a ser abatido. Há uma bibliografia abundante acerca da transplantação arbitrária do presidencialismo e do federalismo norte-americanos à realidade institucional brasileira, de parte de ninguém menos que Rui Barbosa, o artíficie da ordem liberal-republicana de 1891. A “crise brasileira”, ainda hoje, é um desdobramento dessa esdrúxula experiência constitucional, que acabou por nortear todas as Constituições brasileiras subsequentes, inobstante a eventual introdução nestas de elementos parcialmente mitigadores do problema maior. Enquanto os Founding Fathers americanos procuraram encontrar a melhor solução prática ao trabalho de construção das instituições de seu país, os constituintes de 1891 se limitaram ao expediente pouco rentoso da imitação e do macaqueio das experiências alheias, de si intransferíveis.

Passemos, uma vez mais, a palavra ao mestre José Pedro Galvão de Sousa, em página antológica sobre Alberto Torres. Vale a pena a longa citação: “Tendo ocupado a presidência do estado do Rio de 1898 a 1900, escrevia, em prefácio ao seu livro A Organização Nacional: ‘Minha confiança na Constituição de 24 de Fevereiro era, então, completa’. E logo a seguir: ‘Ao passar, em 31 de Dezembro de 1900, o governo da terra fluminense a meu sucessor, o General Quintino Bocaiúva, já não podia ser tão firme — desiludida, como fora, pelos fatos — a minha confiança no regime político que havíamos adotado; e, quando no decurso de alguns anos de magistratura, vim a fazer trato mais íntimo com a Constituição da República, fixou-se em mim a convicção da sua absoluta impraticabilidade’. Dizia que a Constituição era ‘uma carta de princípios exóticos’, uma ‘coleção de preceitos sem assento na vida real’. E ponderava ainda: ‘A Constituição de um país é a sua lei orgânica, o que significa que deve ser o conjunto das normas resultantes de sua própria natureza, destinadas a reger seu funcionamento, espontaneamente, como se exteriorizassem as próprias manifestações da maneira de ser e de viver do organismo político. É por isto que se chama Constituição. A nossa lei fundamental não é uma Constituição, é um estatuto doutrinário, composto de transplantações jurídicas alheias. Seu grande modelo foi a Constituição dos Estados Unidos. Sobre o arcabouço do tipo presidencial e federativo dos americanos justapuseram os constituintes princípios colhidos, aqui e lá, no direito público de outros países, principalmente nas teorias dos publicistas franceses; e a este acervo de doutrinas deram a forma sistemática, metódica, regulamentada, do estilo legislativo próprio do nosso espírito’. O texto encaminhado para ser discutido na primeira Constituinte republicana tinha a recomendá-lo o prestígio de Rui Barbosa. Leitor assíduo dos jurisconsultos anglo-saxônicos, que mais tarde citaria frequentemente ao fazer a exegese da Constituição brasileira, e perfeito dominador da língua vernácula, Rui, entretanto, desconhecia o nosso vernáculo sociológico. O anteprojeto de Constituição, cujos artigos ia ler diariamente ao Marechal Deodoro à medida em que iam sendo elaborados, era uma peça primorosa quanto ao estilo legislativo e quanto ao rigor da técnica jurídica, do ponto de vista meramente formal, porém numa completa dissonância em relação à sociedade para a qual se destinava. A constituição, com efeito, é uma lei orgânica. 

Têm as sociedades a sua constituição, isto é, no dizer de Alberto Torres, a sua ‘maneira de ser e de viver’, assim como os organismos; estes de conformidade com as leis da biologia, aquelas segundo o processo histórico. Na sua formação, as nações se diferenciam entre si por elementos diversos incluídos na tradição de cada uma. Sendo o Estado a Nação juridicamente organizada, nesta organização deve naturalmente refletir-se o substrato da tradição, isto é, a expressão da realidade social e da maneira de ser de cada povo. Por outras palavras, a constituição jurídica do Estado deve corresponder à constituição histórica da nacionalidade. Do contrário será impraticável, se não mesmo utópica, fonte permanente de tensões e de conflitos.” (Op. cit., pp. 21-2).

À relevantíssima questão do “apriorismo político” com que se ocuparam Alberto Torres, no início do século XX, e José Pedro Galvão de Sousa, em torno de cinquenta anos depois, outro luminar da publicística brasileira, também oriundo daquela geração surgida após o 15 de Novembro, dedicou páginas ainda hoje insuperáveis. Refiro-me a Francisco José de Oliveira Vianna (1883 – 1951), em cuja obra logo se veem lições que destoam, e muito, em rigor e amplitude, das elucubrações rasteiras de doutores de almanaque que pululam nas cátedras universitárias — com as exceções de praxe, evidentemente —, a tratarem abstrata e monoliticamente de “representatividade” e “democracia participativa”, de “povo” e “soberania”, de “pacto federativo” e “poder centralizado”, entre outros temas inócuos, que muito pouco ou nada têm de concreto.

Embora tenha se arrependido do endosso aos modismos da época quando, no seu clássico livro Populações meridionais do Brasil, retratou-se de ter defendido teses francamente racistas — que, para além do erro biológico e mesmo ontológico, importou em desconsiderar um dos pilares da nacionalidade, qual seja o fator da mestiçaquem —, Oliveira Vianna é, ainda hoje, apontado como um pensador racista, quando não nazista, por parte considerável do estamento acadêmico, majoritariamente de esquerda. Nem mesmo o seu apoio à aventura autoritária do varguismo pode impugnar a importância de sua obra, de vez que é imenso o número de escritores e intelectuais seduzidos pelo canto de sereia da política, alguns buscando sinceramente a estruturação de uma autêntica civilização política, outros enredados pela mesquinharia dos totalitarismos e das ideologias. É inegável que Oliveira Vianna pertenceu ao primeiro grupo.

Em seu insubstituível O idealismo da Constituição — cuja edição definitiva foi publicada no ano fáustico de 1939, dentro da coleção Brasiliana —, o mestre fluminense vai direto ao ponto: “Cada organização política, com efeito, deve refletir, na sua estrutura, as particularidades e idiossincrasias do povo a que pertence.” (VIANNA, José Francisco de Oliveira. O idealismo da Constituição. 2ª ed., Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, Brasiliana, 1939, p. 08). Mais adiante, trata do que chama de “idealismo utópico”, que seria “todo e qualquer sistema doutrinário, todo e qualquer conjunto de aspirações políticas em íntimo desacordo com as condições reais e orgânicas da sociedade que pretende reger e dirigir.” (Op. cit., p. 10). É quando, entretanto, analisa superiormente o fenômeno do que chamou de “marginalismo das elites” que Oliveira Vianna — em continuação às investigações de seu mestre Alberto Torres — parece lançar o desafio de reconstrução da nacionalidade e de solução mais ou menos aproximada de nossos problemas mais entranhados: enquanto os brasileiros não compatibilizarem o “país real” — vale dizer, os grupos naturais, como a família, o município e o sindicato, e os grupos voluntários, a exemplo das associações diversas, de cunho literário e científico, religioso e caritativo, entre outros — e o “país ideal” — as instituições políticas, o direito positivo etc. —, dificilmente o Brasil superará as sucessivas crises que se abatem sobre si.

Ainda procurarei, desta tribuna, tecer outras considerações acerca da “crise brasileira” e, portanto, da nossa providencial inapetência para o sistema liberal e partidário — pois, em última instância, é disso que se trata, afinal de contas, a se considerar a nossa formação cultural — latina e hispânica, lusíada e mestiça. Por ora, tal como recomendaram os pregadores e taumaturgos de todos os tempos para a salvação das almas — “ide a José e a Maria” —, a melhor consideração a fazer, para a salvação da alma nacional, deve ser um — “ide a Galvão de Sousa, Alberto Torres e Oliveira Vianna”. 

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