(Divulgação)

COLUNA

Allan Kardec
É professor universitário, engenheiro elétrico com doutorado em Information Engineering pela Universidade de Nagoya e pós-doutorado pelo RIKEN (The Institute of Physics and Chemistry).
Coluna do Kardec

O tempo do coração

Falamos sobre como o batimento cardíaco modula nossa percepção do tempo.

Allan Kardec

Atualizada em 02/05/2023 às 23h39
 
 

“Os batimentos cardíacos podem moldar nossa percepção do tempo, estudo mostra”. Essa é a manchete do jornal The New York Times, desta semana. Talvez você diga “grande coisa!” ou “eu já sabia!”. De fato, o coração está no coração do mundo, há milênios.

Inclusive há uma leitura, ou melhor, intepretação de Aristóteles, o pai da filosofia e portanto da Ciência ocidental: o cérebro seria algo como o “radiador” do corpo. Para quem é mais novo e não viu carro com radiador ou mesmo ele fumegando no meio da rua na década de 80, o radiador é o mecanismo responsável por resfriar o motor. Aristóteles pensava que o coração comandava tudo, enquanto o cérebro – essa massa cinzenta – seria apenas usado para resfriar o sangue...

Claro, o mundo se livrou dessa parte do que ele pensava enquanto preservou as contribuições milenares para o pensamento humano que hoje navegamos! O cérebro passou a ser respeitado e, graças a esses estudos, deu qualidade de vida a gente com Alzheimer, Parkinson, depressão, ansiedade... 

Mas o coração continuou um ícone e um desafio. Vivemos hoje no que os especialistas chamam de “mundo líquido” - um universo fluido, superficial, aquele mundo McDonald's: você consome e descarta ou, sendo mais rude, você come e cospe. A hegemonia do materialismo acontece ao mesmo tempo do maior avanço tecnológico da Humanidade! Quem diria...

Há uma música de 1978 – eu tinha 8 anos - “You needed me”, de Anne Murray, em que ela fala “você me colocou em um pedestal tão alto que eu quase pude contemplar a eternidade”. Não quero estragar sua admiração com meu cientificismo, mas o que gostaria de falar é sobre esse artigo referido no The New York Times e tem muito a ver com essa belíssima metáfora: a percepção do poeta de traduzir a emoção em tempo! 

O estudo foi publicado este mês na revista Psychophysiology por pesquisadores da Cornell University, e descobriu que, quando observadas no nível de microssegundos, algumas distorções de percepções podem ser causadas por batimentos cardíacos, cuja duração varia de momento a momento. Quais? Você relaxado percebe o tempo mais lentamente, enquanto agitado é o contrário. O batimento do coração evidencia isso!

Prova a teoria de Aristóteles? Adoraria, em reverência ao grande vate, mas a resposta é não. O estudo fornece mais evidências, após uma era de pesquisa focada no cérebro, de que não há uma única parte do cérebro ou do corpo que controle o tempo. “O cérebro controla o coração, e o coração, por sua vez, impacta o cérebro.” – disseram os pesquisadores.

Confesso que esse artigo me atraiu também por algo trivial: nos exames anuais, tive de fazer um teste ergométrico e correr na esteira. Lembrei que, ainda muito novo no mestrado, o professor Yoshifumi Yasuda nos colocava para nós mesmos sermos cobaias e pedalar até a exaustão, tentando estimar o débito cardíaco, que é o fluxo sanguíneo produzido pelo coração a cada batimento. Só que no nosso caso, usávamos ferramentas puramente matemáticas.

Quando voltamos do Japão, continuamos a trabalhar com nossos alunos e tentar entender como o cérebro trabalha com o coração e vice versa. Uma das pesquisas foi tentar descobrir os códigos utilizados pelo sistema nervoso para converter estímulos do ambiente em percepções, bem como para transformar motivações internas em ações.

“Mas como esses códigos são escritos? Se os circuitos anatômicos podem ser considerados o hardware cerebral, isto é, a estrutura física, é possível ter acesso ao seu software, à programação em si?” – escreveu o professor Sidarta Ribeiro na famosa revista Scientific American, em artigo intitulado “À procura da batida perfeita”, sobre nosso trabalho, em cooperação da UFMA com a Universidade de Nagoya e o Brain Science Institute, de Wako.

O interesse pela percepção do tempo explodiu desde a pandemia de Covid, quando as atividades fora de casa pararam abruptamente. Um estudo de percepção do tempo realizado durante o primeiro ano do bloqueio na Grã-Bretanha descobriu que 80 por cento dos participantes relataram distorções no tempo, em diferentes direções. Em média, pessoas mais velhas e socialmente isoladas relataram que o tempo diminuiu, e pessoas mais jovens e ativas relataram que ele acelerou.

Pesquisas anteriores investigaram como o seu estado físico está ligada ao processamento do estresse e estados emocionais como ansiedade e pânico. O estudo na universidade de Cornell expande isso ao focar no papel do coração em uma função não emocional: a percepção do tempo, que pode estar ligada a distorções maiores no nosso cérebro.

A beleza desse trabalho está vinculada ao que notamos no dia a dia: se algo é importante para consolidar memórias, como um evento traumático ou de grande alegria, nosso sistema nervoso “diminui” esse tempo. Enquanto em momentos tristes ou de depressão, ele é “esticado”.

Essa realidade é muito bem percebida pelos poetas e cancioneiros. Uma delas, que me lembro agora, é de Zé Ramalho, quando ele intercambia o “tempo” por “vento”, em um verso que aqui relembro: “E se teu amigo vento não te procurar / É porque multidões ele foi arrastar / Devorando árvores, pensamentos, seguindo a linha / Do que foi escrito pelo mesmo lábio tão furioso”

*Allan Kardec Duailibe Barros Filho, PhD pela Universidade de Nagoya, Japão, professor titular da UFMA, ex-diretor da ANP, membro da AMC, presidente da Gasmar.

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