(Divulgação)

COLUNA

Allan Kardec
É professor universitário, engenheiro elétrico com doutorado em Information Engineering pela Universidade de Nagoya e pós-doutorado pelo RIKEN (The Institute of Physics and Chemistry).
Coluna do Kardec

E os adormecidos de Éfeso?

Pequenas reflexões sobre o tempo e o ano que se inicia.

Allan Kardec

Atualizada em 02/05/2023 às 23h38
 
 

O Mediterrâneo tem lendas que competem com suas belas e cristalinas águas. Conta-se que o imperador Décio, aportando em Éfeso, ordenou que toda a cidade fizesse oferendas aos deuses romanos. Só para lembrar três deles: Marte, deus da guerra; Minerva, deusa da justiça e; Júpiter, pai de todos os deuses. Eram os idos do ano 250 depois do nascimento de Jesus e o cristianismo continuava sendo perseguido pelo Império Romano como foi nos primórdios, quando Nero atribuiu aos cristãos o incêndio terrível em Roma, levando vários à morte em espetáculos deprimentes no Coliseu!

A lenda é muito bonita, mas vou resumir. Décio foi a Éfeso a fim de reivindicar a conquista do seu novo território. Ele mandou construir templos para que todos fizessem suas oblações, mas sete cristãos optaram por desobedecer ao imperador: Maximiliano, Malco, Marciano, Dionísio, João, Serapião e Constantino. Foram detidos e conduzidos a Décio que, ao ouvi-los confessar que eram cristãos, não quis condená-los imediatamente concedendo tempo até sua volta de viagem para refletirem e retratarem-se.

Enquanto o imperador viajava, eles distribuíram seus bens aos pobres e se refugiaram na montanha próxima, em uma caverna. O soberano, ao voltar, mandou procurar os sete cristãos. A busca aconteceu e eles foram encontrados! Décio determinou então que os enclausurassem com uma pedra em seu esconderijo para que dessa forma morressem.

O tempo passou. Em um determinado dia, um fazendeiro se deparou com a caverna e decidiu usá-la como abrigo para seu gado, quebrando então um selo que havia sido posto para garantir que ninguém libertaria os fugitivos. Neste momento, os sete, que dormiam até então, acordaram e Malco foi à cidade para comprar aquela que ele acreditava ser a sua última refeição.

Ao chegar no comércio local, o cristão se surpreendeu ao ver cruzes sobre igrejas e que a moeda que carregava já não valia mais nada! Ficou ainda mais surpreso ao ver acima das portas da cidade o sinal da cruz. Ao chegar ao mercado e ouvir que todos mencionavam Cristo, seu estupor não tinha limites.

A conversa não demorou a se espalhar pela cidade. Ao ver que se tratava de uma história extraordinária, os sete foram levados ao novo imperador, o cristão Teodósio, que decidiu examinar a caverna junto com o bispo. Qual a surpresa de verem que tinha se passado mais de 150 anos! 

Lembrei dessa lenda ao ver os novos padrões que vão se estabelecendo rapidamente, quase à velocidade da luz. Claro, não sou eu, mera testemunha da História, que vou tentar mudá-los, mas é interessantíssimo como o mundo está capotando e revisando inúmeros conceitos.

Esta é uma crônica e não tenho nenhuma intenção de torná-la um estudo antropológico, mesmo porque me faltam conhecimentos mais aprofundados e espaço para fazer um trabalho científico. No entanto, tomemos o famoso faroeste Django Livre, de Quentin Tarantino (meio velho, de 2012). Imagens chocantes da escravidão, a humilhação que os negros foram submetidos, as torturas e o espetáculo dantesco de então.

Leonardo DiCaprio é o senhor dono de terras e louco! Na personagem de Calvin Candie (foto) que, assim como outros senhores de escravos mostrados na película, mergulha profundamente na insanidade, na desumanidade, na insensibilidade. O filme exibe um espetáculo de humilhações, servilismo e escravidão.

Os cristãos de Éfeso viajaram um século e meio em uma noite. O que aconteceria se o senhor Candie fosse teletransportando também para nossa época? Que ele testemunharia se aportasse na Praia Grande, e ouvisse a voz dura de nosso Nauro Machado? O que diria ao escutar outro poeta declamando Darcy Ribeiro e gritando, a pleno pulmões que “a doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal que também somos”?

Enfim, chegamos a janeiro de 2023. Vamos nos colocar em 2123, portanto daqui a um século! O que faríamos de diferente – já que hoje condenamos os erros dos nossos antepassados? Quais caminhos apontaríamos? Em nossos dias, não aceitamos que seres humanos desfilem nas ruas com algemas e ferros nos pés e nas mãos, pergunto: no próximo século, será que consideraremos razoável pessoas pedindo esmolas nas ruas ou mães ao nosso lado sem ter o que dar para comer aos seus filhos?

Qual filme nos julgará?

* Allan Kardec Duailibe Barros Filho, PhD pela Universidade de Nagoya, Japão, professor titular da UFMA, ex-diretor da ANP, membro da AMC, presidente da Gasmar.


 

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