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COLUNA

Allan Kardec
É professor universitário, engenheiro elétrico com doutorado em Information Engineering pela Universidade de Nagoya e pós-doutorado pelo RIKEN (The Institute of Physics and Chemistry).
Coluna do Kardec

O crepúsculo da razão

Um mergulho na inteligência artificial e seu fundamento, as redes neurais.

Allan Kardec

Atualizada em 02/05/2023 às 23h38

 

                      
                     

 

Henry Kissinger publicou um livro monumental: “Sobre a China”. O livro é intenso e importante por pelo menos duas razões: primeiro porque o “Império do Meio” é imensamente desconhecido por nós; segundo porque ele conta a história por dentro. Afinal, ele esteve presente nas articulações e diálogos dos Estados Unidos com aquele país por quase quatro décadas: ele participou dos governos de Eisenhower a Gerald Ford, passando pelo período tumultuado de Richard Nixon.

Mais de uma década depois, Kissinger se juntou com Eric Schmidt e Daniel Huttenlocher para escrever outro livro instigante, lançado recentemente, “A Era da Inteligência Artificial”. Schmidt foi CEO da Google e Huttenlocher tem uma longa carreira com contribuições na computação.

Afinal, o que é inteligência artificial? A nossa primeira impressão e recorrência são os filmes de ficção científica, aqueles robôs que agem e decidem sozinhos. Provavelmente um dos que fez mais sucesso foi “O exterminador do futuro” com Arnold Shwatsneger e sua frase icônica “Hasta la vista, baby!”. 

O fundamento da inteligência artificial são as redes neurais artificiais. Hoje as redes são complexas e enormes. Mas seu início foi com Warren McCulloch and Walter Pitts em 1943, quando propuseram o primeiro neurônio artificial. Feitos eletronicamente. As redes neurais são um conjunto de neurônios artificiais feitos no computador que simulam o cérebro humano. Da mesma forma que o cérebro, as redes aprendem com exemplos, com repetição. Qual a diferença para um código de computador feito por programadores? As redes se autoprogramam!

As redes neurais surgiram na década de 1960 e um dos idealizadores foi Shun Ichi Amari, que me orientou no Brain Science Institute, em Tokyo, no Japão – uma das inteligências mais brilhantes que conheci na atual encarnação. Matemático, mas tem uma cabeça que funciona com imagens e geometria, explicando qualquer campo, seja física ou neurociência em termos de imagens interessantes que nos fazia entender as complexas equações que ele criava.

De lá para cá, houve muitos altos e baixos e grandes progressos. O planeta explodiu em aplicações e uso das redes neurais. Por exemplo, no seu celular há uma rede neural quando você vai tirar fotos e ele automaticamente localiza os rostos. Na UFMA, vários professores fazem trabalhos na área de inteligência artificial. Talvez um dos exemplos que mais chamaram a atenção do público em nosso laboratório foi uma série de três teses de doutorado em que nossos estudantes mostraram que usar redes neurais para encontrar nódulos em imagens de mamografia é extraordinariamente mais eficiente que o cérebro humano. Chegamos a números de acertos acima de 97% para predizer se uma determinada região da mama seria benigna, maligna ou normal.

Enfim, há um entendimento geral do que seria inteligência artificial: a máquina dominando os humanos e disputando espaços conosco. Os robôs evoluem e conquistam nosso planeta – algo que tem se repetido por filmes, livros e diálogos. Kissinger demonstra que a direção é completamente diversa: os robôs não caminham para dominar nosso planeta! Detalhe: ele nasceu em 1923 e, portanto, fará 99 anos. No livro, ele reitera que a inteligência artificial é talvez a maior revolução tecnológica dos últimos dois mil anos. Pela simples razão que ela amplia nossas capacidades sensoriais e cognitivas.

A primeira revolução industrial nos deu maior mobilidade: a máquina a vapor catalisou inúmeros avanços para a Humanidade. Mas as redes neurais artificiais, que atingem agora seu auge no que os estudiosos chamam de quarta revolução industrial, nos dão o que jamais sonhamos: expandem nossas capacidades sensoriais e cognitivas, justamente porque não estão ancoradas na razão humana.

Deixa eu tentar argumentar um pouco para justificar minha posição. O Deep Blue foi um computador que a IBM construiu para jogar xadrez e que venceu uma partida contra Garry Kasparov, o maior campeão da época, nos idos de 1996. Em resumo, o Deep Blue tinha milhares de instruções em seu algoritmo de jogadas que repetiam as que tinham sido feitas antes por mestres e grandes mestres. Para cada peça que se movesse, ele escolhia, dentre as que tinha em sua memória, a que provavelmente lideraria a máquina para a vitória.

Em 2017, surgiu a AlphaZero, desenvolvida pela Google. É hoje a grande campeã de xadrez do planeta. Mas, diferentemente do Deep Blue, a AlphaZero se baseia em inteligência artificial. Qual a diferença? Ela não necessariamente repete as jogadas anteriores: ela mesmo constrói as suas, inclusive alguma que pode nem ter sido feita no passado por nenhum grande mestre! Ou seja, ela trabalha de tal forma diferente que faz coisas que humanos não fariam - tal como entregar a rainha.

Esse fato tem consequências profundas. António Damásio, professor de neurociência na Universidade do Sul da Califórnia, escreveu um livro icônico chamado “O erro de Descartes”. Em resumo, ele mostra neste e em seus livros seguintes, que o homem, para ser racional, precisa fortemente de emoção. Por exemplo, há uma pequena região no cérebro em que basicamente todas as emoções transitam: a amígdala. Fica mais ou menos no centro de nosso cérebro e é um pouco maior que um caroço de feijão. Damásio mostra em seu livro um exemplo em que um paciente teve sua amígdala calcificada. A consequência foi que a pessoa se tornou absurdamente irracional. Tomando atitudes que um homem comum não tomaria. Ou seja, aquela estória popularmente conhecida de “separar razão da emoção” não só não faz sentido como é desastroso.

Não há, portanto, no horizonte, qualquer possibilidade de máquinas disputarem conosco. Pelo contrário, elas aumentarão – como já estão fazendo – as nossas capacidades. Nossa inteligência será complementada pela inteligência artificial. A China reconheceu isso e há mais de uma década investe em inteligência artificial para fazer gestão pública. O Brasil tem centenas de cérebros brilhantes que poderão ajudar na transformação sonhada do país. Só tem de abrir a janela e olhar lá fora: eles estão à vista!

*Allan Kardec Duailibe Barros Filho, PhD pela Universidade de Nagoya, Japão, professor titular da UFMA, ex-diretor da ANP


 

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