SANTIAGO (CHILE) - A Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) iniciou, nesta quarta-feira (26), o julgamento de denúncias apresentadas por comunidades quilombolas que acusam o Estado brasileiro de ter cometido violações durante a construção do Centro de Lançamento de Alcântara, localizado no Maranhão. Pela primeira vez, o Brasil será julgado por um caso envolvendo quilombolas. As audiências ocorrem na sessão itinerante da Corte em Santiago, no Chile.
Uma das primeiras testemunhas a serem ouvidas foi Maria Luzia Diniz, de 68 anos, que reside na agrovila Marudá, em Alcântara. A agrovila foi um espaço criado, pela Força Aérea Brasileira (FAB), criado para o remanejamento das famílias retiradas da área.
"Foi muito difícil aceitar ser realocado para outro lugar. Não concordávamos em nada e não era satisfatório para ninguém. Foi triste ver pessoas chorando e desesperadas sem saber para onde ia. Trouxeram a gente para as agrovilas, passamos fome, ganhamos título de miseráveis, porque a gente tinha um patrimônio muito rico e, de repente, perdemos tudo. A gente vive até hoje com sacríficos naquele lugar. Fizeram promessas que nós iríamos para um lugar melhor. Deram uma casa de alvenaria, quando a gente recebeu, quando chovia a gente tinha procurar um lugar para dormir. Tivemos que nos conformar e aceitar essa condição. Vivíamos do extrativismo, roça e pesca e isso foi arrancado de nós. Fizeram vilas perto da praia, para as famílias dos militares da aeronáutica e os moradores foram realocados em áreas mais distantes. Não tivemos nem oportunidade nem de visitar o cemitério dos nossos ancestrais, dos nossos pais, deixamos tudo para trás e até hoje, não recebemos dinheiro de nada. Já são mais de 40 anos e não foi resolvida essa questão e mesmo assim, ainda dói muito", disse Maria.
A denúncia foi apresentada em 2001 por povoados, sindicatos e movimentos sociais à Comissão Interamericana de Direitos Humanos. A queixa foi aceita em 2006 pela comissão e levada à Corte somente em janeiro de 2022.
“O julgamento é de importância histórica. É a primeira vez na história do país que o Brasil é julgado em um tribunal internacional por crimes cometidos contra quilombolas. Além disso, constitui importante oportunidade para a própria Corte IDH consolidar jurisprudência de proteção aos territórios ancestrais de comunidades afrodescendentes na região”, disse Danilo Serejo, quilombola de Alcântara e assessor jurídico do Movimento dos Atingidos pela Base Espacial (Mabe), em nota divulgada pela organização Justiça Global.
Os denunciantes querem que a Corte determine que o governo brasileiro conceda a titulação definitiva do território quilombola, pague indenização às comunidades removidas e às que permaneceram no local, crie fundo de desenvolvimento comunitário em conjunto com as famílias quilombolas e realize estude de impacto ambiental e cultural.
“A imposição do Estado de construir o Centro de Lançamento de Alcântara num território tradicional, deteriorando modos de vidas, laços familiares e tentando apagar uma parte da nossa história, mostra como o racismo ambiental orientou a política. Por isso, o Brasil tem o dever, perante a Corte Interamericana, de reconhecer sua responsabilidade como ator nas violações contra os quilombolas de Alcântara, bem como avançar imediatamente com a titulação do território. O que está em jogo na Corte, nos próximos dias, é o real compromisso do Estado brasileiro com o enfrentamento ao racismo”, afirmou a diretora-executiva da Justiça Global, Glaucia Marinho.
Para a ministra substituta dos Direitos Humanos e da Cidadania, Rita Oliveira, que compõe a delegação do governo, a audiência serve para reconstruir a relação entre o Estado e os remanescentes dos quilombos. “Aprendemos nessa trajetória que o desenvolvimento científico e tecnológico não é incompatível com a defesa e promoção dos direitos humanos. Apenas o desenvolvimento baseado nos seus princípios legitima os avanços da ciência e da tecnologia com sustentabilidade etnoambiental e integridade pública”, avalia, conforme nota publicada pela pasta.
Entenda o caso
O Centro de Lançamento de Alcântara foi construído nas proximidades da capital São Luís, na década de 1980 pela Força Aérea Brasileira (FAB), como base para lançamento de foguetes.
Na época da construção, 312 famílias quilombolas, de 32 povoados, foram retiradas do local e reassentadas em sete agrovilas. Alguns grupos permaneceram no território e, conforme os denunciantes, sofrem com a constante ameaça de expulsão para a ampliação da base.
Em 2001, representantes de comunidades quilombolas do Maranhão, do Movimento dos Atingidos pela Base de Alcântara (Mabe), da Justiça Global, da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH), da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Maranhão (Fetaema), do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Alcântara (STTR) e da Defensoria Pública da União (DPU) apresentaram denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
O grupo acusa o Estado brasileiro de ter cometido violações com a instalação do centro, com desapropriação e remoção compulsória de famílias quilombolas. Segundo a denúncia, a perda do território causou impacto no direito dessas comunidades à cultura, alimentação, educação, saúde e livre circulação. Além disso, não foi concedido aos quilombolas os títulos definitivos de propriedade.
Em 2004, a Fundação Palmares certificou o território. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) identificou e delimitou a área em 2008.
Cinco anos após a apresentação da denúncia, a comissão a considerou admissível. Em relatório de 2020, após audiências feitas em 2008 e 2019, o grupo recomendou que o governo brasileiro fizesse a titulação do território tradicional, consulta prévia aos quilombolas sobre o acordo firmado pelo Brasil e os Estados Unidos (que permite atividades espaciais de companhias norte-americanas na Base de Alcantâra, chamado acordo de salvaguardas tecnológicas) no ano anterior, reparação financeira para os removidos e pedido público de desculpas.
As recomendações não foram seguidas pelo governo brasileiro. Dessa forma, a comissão levou o caso à Corte em janeiro de 2022.
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