Contextualizando
Projeto de Lei aprovado pela Câmara dos Deputados visa transformar o feminicídio em um crime autônomo, com pena de reclusão de 20 a 40 anos, diferenciando-o do homicídio qualificado. Diferentemente do que afirma um vídeo que viralizou nas redes sociais, a vida de uma mulher não vai valer o dobro da vida de um homem. O projeto de lei estabelece, na verdade, que a violência de gênero, ou seja, quando a vítima é morta por ser mulher, deixa de ser uma agravante à pena inicial do homicídio e passa a ter uma pena própria. O Comprova mostra que nem todo crime que envolve a morte de mulheres é considerado um feminicídio.
Conteúdo analisado: Em vídeo, jornalista afirma que uma mudança recente no Código Penal vai fazer com que o homicídio de mulheres seja considerado mais grave do que o de homens. Durante a fala, ele questiona o porquê de a vida de uma mulher valer “duas vezes a vida de um homem” para a lei brasileira. Para embasar o questionamento, o homem diz que a Câmara dos Deputados aprovou uma alteração no Código Penal, que muda a pena de “matar uma mulher” para 20 a 40 anos de prisão, enquanto a de “matar um homem” tem pena prevista de 6 a 20 anos.
Onde foi publicado: YouTube e X.
Contextualizando: No dia 11 de setembro de 2024, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 4.266/23, que prevê a criação de um artigo específico para a tipificação do crime de feminicídio, para que ele se torne um crime autônomo e deixe de ser apenas uma qualificadora do crime de homicídio, como explicou a advogada Emanuelly Nogueira, vice-presidente da Comissão da Mulher Advogada da Ordem dos Advogados do Brasil no Rio Grande do Norte (OAB/RN), ao Comprova:
“O projeto de lei estabelece que o feminicídio, ou seja, a violência de gênero – quando a vítima é morta por ser mulher – deixa de ser uma agravante (qualificadora) à pena inicial do homicídio e passa a ter pena própria. As qualificadoras são tudo aquilo que vão agravar a forma como o crime ocorreu – se foi por arma branca ou arma de fogo, se teve violência prévia, maus tratos ou ameaça, se foi dado o direito de defesa à vítima ou se foi um feminicídio, por exemplo”, explica Nogueira.
A proposta estabelece reclusão de 20 a 40 nos casos em que for constatado o feminicídio, um aumento em relação ao período determinado pelo Artigo 121 do Código Penal para o crime de homicídio, que pode ser classificado como simples (com pena de 6 a 20 anos de reclusão) e qualificado – caso das mortes por violência de gênero, tortura, emboscada, entre outras – , com pena de reclusão de 12 a 30 anos.
O tema tem gerado confusão, fazendo com que pessoas acreditem que o projeto de lei vai dar mais valor à vida de mulheres vítimas de homicídio, como demonstrou o jornalista Alexandre Garcia em um vídeo, em que ele diz que “é mais fácil matar um homem, então” e questionou o porquê de a vida de uma mulher valer “duas vezes a vida de um homem para a lei brasileira”.
A titular da Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher de Mato Grosso do Sul, Analu Ferraz, explica que a diferença entre homicídio de mulher e feminicídio consiste no contexto em que a morte ocorre, desde o autor à motivação.
Segundo ela, nem todo crime que envolve a morte de mulheres é considerado um feminicídio. A morte pode ser decorrente de outras razões que levam ao homicídio, como roubo seguido de morte, por exemplo. O crime só é qualificado como feminicídio quando é praticado no âmbito da violência doméstica, ou então quando é praticado em decorrência da vítima ser do gênero feminino.
A delegada Ferraz acrescenta que o PL 4.266/23 é um “pacote antifeminicídio”, já que também dispõe sobre o agravamento de penas de outros crimes considerados o “caminho” para o crime de feminicídio, como ameaça e vias de fato.
“O crime de ameaça, hoje, que é de ação pública condicionada à representação, com esse projeto de lei vai passar a ser público incondicionado. Então, o crime de via de fato, a contravenção penal de via de fato, vai ter uma pena maior se for praticada no contexto de violência doméstica. O agressor, condenado por crime de feminicídio, perde o cargo ou função pública, fica impossibilitado de assumir cargo ou função pública, diversas coisas que vão vir com o projeto de lei”, disse Ferraz.
Segundo a delegada e a relatora da matéria, deputada federal Gisela Simona (União Brasil-MT), a tipificação do crime de feminicídio também ajudará na criação de um banco de dados mais eficiente, essencial para a criação de políticas públicas.
“Esse é um aspecto positivo: quando você coloca o feminicídio como crime autônomo, você detalha melhor aquela conduta para adequação típica quando o crime é praticado, o operador do direito analisar o que está descrito na norma e ver se aquela conduta se encaixa naquela norma jurídica”, disse a delegada.
“A criação do tipo penal autônomo de feminicídio é medida que se revela necessária não só para tornar mais visível essa forma extrema de violência contra a mulher, mas também para reforçar o combate a esse crime bárbaro e viabilizar a uniformização das informações sobre as mortes de mulheres no Brasil”, afirmou a relatora, durante a votação do projeto na Câmara.
A advogada Emanuelly Nogueira destaca que a aprovação do projeto é um avanço significativo na legislação e na proteção à mulher.
“O feminicídio é uma epidemia mundial e precisa ser combatido de uma forma muito enérgica. Essa inovação da lei representa uma vitória muito significativa, porque trata de um crime relacionado à violência de gênero, em que um assassino viu que a vida de uma pessoa, pelo fato de ela ser mulher, não importava. Ele acredita que essa vida lhe pertence e que pode tirá-la a hora que bem entender”, diz.
Mudanças trazidas pelo Projeto de Lei
Como anteriormente citado, o PL se trata de um “pacote antifeminicídio”, e dispõe também sobre outros crimes relacionados à segurança da mulher.
A matéria propõe, no âmbito da Lei Maria da Penha, o aumento da pena do condenado que, no cumprimento da pena, descumprir medida protetiva contra a vítima. A punição para esse crime de violação da medida protetiva aumenta, saindo de detenção de 3 meses a 2 anos para reclusão de 2 a 5 anos e multa.
O texto muda também outros direitos e restrições de presos por crimes contra a mulher por razões da condição do sexo feminino, como os crimes que envolvem violência doméstica e familiar ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher.
Assim, quando um presidiário ou preso provisório por crime de violência doméstica ou familiar ameaçar ou praticar novas violências contra a vítima ou seus familiares durante o cumprimento da pena, ele será transferido para presídio distante do local de residência da vítima.
No caso da progressão de regime, em vez de ter de cumprir 50% da pena no regime fechado para poder mudar para o semiaberto, o projeto aumenta o período para 55% do tempo se a condenação for de feminicídio. Isso valerá se o réu for primário, e não poderá haver liberdade condicional.
Para o crime de agressão praticado contra a mulher por razões da condição do sexo feminino (no âmbito da lei de contravenções penais, Decreto-Lei 3.688/41) a pena de prisão simples de 15 dias a 3 meses será aumentada pelo triplo.
Já o crime de ameaça, que pode resultar em detenção de 1 a 6 meses, terá a pena aplicada em dobro se cometido contra a mulher por razões do sexo feminino e a denúncia não dependerá de representação da ofendida.
De igual forma, crimes como injúria, calúnia e difamação praticados por essas razões terão a pena, que atualmente é de 6 meses a 2 anos e multa, aplicada em dobro.
Para os crimes de lesão corporal praticados contra ascendente, descendente, irmã, cônjuge ou companheiro, ou contra pessoa com quem o réu tenha convivido, a pena de detenção de 3 meses a 3 anos passa a ser de reclusão de 2 a 5 anos.
Igual intervalo de pena é atribuído à lesão praticada contra a mulher por razões de sua condição feminina. Atualmente, o condenado pega de 1 a 4 anos de reclusão.
A tramitação do texto já foi encerrada e aguarda sanção do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) até o dia 9 de outubro.
Fontes consultadas: Para este Contextualizando, foram consultados o texto do Projeto de Lei 4.266/23, o Código Penal brasileiro, a titular da Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher de Mato Grosso do Sul, Analu Ferraz, e a vice-presidente da Comissão da Mulher Advogada da Ordem dos Advogados do Brasil no Rio Grande do Norte (OAB/RN), Emanuelly Nogueira. Tentamos contato com o jornalista que publicou o vídeo que suscitou este Contextualizando, mas não obtivemos retorno até a publicação.
Para se aprofundar mais: Em 2023, o Comprova explicou o caso Maria da Penha, que originou lei de proteção a mulheres vítimas de violência no Brasil. Em janeiro deste ano, o Comprova voltou a publicar sobre o tema, explicando como foi feita a verificação do caso.
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