(Divulgação)
COLUNA
Gabriela Lages Veloso
Escritora, poeta, crítica literária e mestranda em Letras pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA).
Gabriela Lages Veloso

As sombras que nos habitam

Reproduzo aqui o texto da professora Márcia Manir acerca da Coletânea As Sombras da Cidade, que organizei em 2024.

Márcia Manir*

Atualizada em 19/12/2024 às 16h16
Ilustração: Bruna Lages Veloso
Ilustração: Bruna Lages Veloso

O convite que me foi feito pela talentosa escritora Gabriela Lages Veloso para prefaciar uma coletânea de contos, crônicas e poemas de autoria diversificada, porque escrita sob várias vozes, me chamou a atenção pela temática, já expressa no título metafórico. As sombras da cidade – e não A cidade e suas sombras – parecem suscitar no leitor aquilo que, simbolicamente, temos como mais visível à primeira vista: a sombra e, em segundo plano, a cidade sobre a qual pousa algo que lembra a perda da alma. Uma cidade e suas sombras seria o mesmo que as sombras que povoam a cidade? Penso que não. Vejamos. 

 Nos poemas, contos e crônicas aqui reunidos em ordem alfabética por autor ou por autora, o símbolo “sombra” tanto nos remete à ausência de luz que torna a cidade fria e desumana, quanto à imagem das coisas fugidias, mutantes ou irreais que nos remete para a quimera ou para o simulacro da vida. Uma cidade sem muralhas, idílica, a ilustrar que o “nosso reino não é deste mundo”, como profetiza o eu lírico de Ana Cláudia Santos ou uma cidade que, apesar das inúmeras mazelas, segue, porque “o amor consegue penetrar em seus meandros”, conforme nos motiva o poema “Urbanidades”, de Daniela Bloc. As sombras que varrem as cidades são acompanhadas de perto pela figura do flâneur que constata ao mesmo tempo a solidão, as amarguras e as dores que acometem os indivíduos que nelas vivem, ainda que haja as cores que libertam (poema “Por aí!”, de Magna Costa); emoções já sentidas de perto por Cesário Verde em “O sentimento dum ocidental”, longo poema escrito em 1880 que, em seus primeiros versos, pontua o quanto inspira e ao mesmo tempo incomoda o eu lírico o fato de viver a cidade e sua efervescência ou a sua monotonia: “Nas nossas ruas, ao anoitecer,/ Há tal soturnidade, há tal melancolia,/ Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia/ Despertam um desejo absurdo de sofrer” (Verde, 2015, p. 07).   

 São as sombras que ganham projeção e se dispersam por sobre a cidade, tornando-a ora irrespirável, ora cruel, como retratam, em grande parte, os poemas escolhidos para figurar nesta bela coletânea. Bela também é a cidade para o eu lírico que exalta sua terra natal e faz dela uma alegoria da cultura, a estampar tradições e encantamentos, de modo a afugentar a sombra e sua melancolia: “Minha ilha encantada/ Ilha do meu coração/ Terra de tantas belezas/ São Luís do Maranhão/ Nem sei se um dia seria/ Capaz de me apaixonar/ Por qualquer outra cidade/ Que não fosse este lugar” (“Ilha do Maranhão”, de Ilci Machado).

 A atmosfera de soturnidade se transfere igualmente para a recolha de crônicas e contos, textos muitas vezes híbridos, a beirarem a prosa poética ou memorialista. Porém, o que predomina, sem sombra de dúvida – e essa expressão não é casual - , é a ausência de luz, de vida, de fraternidade, de paz, visto o mergulho da cidade na violência e nas desigualdades sociais. Digna de nota é a crônica/conto “No mesmo barco”, de Roberto Carvalho, em que a Fome, de forma maiúscula, se interpõe, qual uma sombra feroz, entre a vida e a morte: “Há muito eu sinto a Fome me comer. São poucos os que sabem o que é a Fome ganhar vida própria, o que é ser vítima deste monstro sedento de morte. [...]. Assim, quando consigo alimentá-la com algo que encontro no lixo, meu alívio não é um estômago satisfeito, mas o adiamento de ser devorada”. 

 Tamanha é a brutalidade sofrida que se torna dispensável a intermediação de um narrador, como acontece em “Memórias do subsolo”, de Walter Oliveira Neto, em claro jogo intertextual com Dostoiévski. As trajetórias tecidas dos personagens, a disputarem espaço num ônibus metropolitano, falam por si mesmas, de modo a exigirem do leitor que organize ele próprio a estrutura da diegese.       

 A cidade rememorada em tom de nostalgia ou saudade ganha também a sua importância, como se tentasse afastar a triste sombra do sofrimento ou da falta de oportunidades que imperam na urbe desigual e excludente. “A casa dos espíritos dos ferroviários”, de Antonio Galvão, enquanto gênero crônica (ou será outro?), assim se posiciona: é preciso fazer aflorar a sensibilidade para que a memória tome assento e se deixe contaminar pela poesia. Rico e denso, portanto, é o trecho em que o eu se manifesta: “Sou filho e neto de ferroviário. Minhas veias são trilhos com dormentes que levam até o coração. Na estação central do meu afeto trafegam locomotivas, trem de passageiros, de carga e a sinfonia dos trilhos com rodas”. 

 Que nos trilhos das palavras, dos versos e das linhas o leitor de As sombras da cidade se sinta conduzido para o interior das cidades e vivencie as experiências múltiplas que, com certeza, também são as suas, assim como as sombras que as habitam.

 

REFERÊNCIAS:

VELOSO, Gabriela Lages. As Sombras da Cidade: Coletânea de Contos, Crônicas e Poemas. Mauá (SP): Brecci Books, 2024.

VERDE, Cesário. Cânticos do Realismo: o livro de Cesário Verde. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2015. 

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SOBRE A AUTORA: Márcia Manir Miguel Feitosa é professora e crítica literária. Graduada em Letras pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Mestra e Doutora em Letras - Literatura Portuguesa, pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-Doutora, com bolsa CAPES, pelo Programa Ciência sem Fronteiras, em Estudos Comparatistas na Universidade de Lisboa (ULisboa). Atualmente é professora titular do Departamento de Letras da Universidade Federal do Maranhão (UFMA) e atua como docente nos Programas de Pós-Graduação em Letras (PGLETRAS) e em Cultura e Sociedade (PGCULT) da UFMA. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literaturas Vernáculas, atuando, sobretudo, nos seguintes temas: literatura e paisagem, literatura portuguesa e africana de língua portuguesa, literatura e patrimônio, cultura, identidade, memória e exílio.

 

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