Representações da violência contra a mulher na literatura
Crônica que recebeu 2º lugar no II Concurso Literário Maria Firmina dos Reis.
A Literatura é um ótimo instrumento para melhor compreensão do ser humano e do mundo que o cerca. Consegue adentrar as mais diversas temáticas, por mais densas que sejam. Não seria diferente com a temática da violência contra a mulher. Diversas obras literárias já versaram sobre esse tema, mas, particularmente, recentemente li duas que, cada qual à sua maneira, muito chamaram minha atenção sobre o assunto.
A primeira delas é Lisbela e o Prisioneiro (1964) do escritor pernambucano Osman Lins (1924 – 1978). É uma peça que se passa numa prisão situada no interior de Pernambuco. Leléu, artista circense e galanteador, encontra-se preso após deflorar várias mulheres. No entanto, esperto como o era, sua condição de presidiário não o impede de conquistar Lisbela, filha do tenente Guedes e noiva do doutor Noêmio.
Apaixonada pelo prisioneiro, a jovem está disposta a fazer de tudo para ajudá-lo a fugir da prisão e com ele ir embora.
Ao mesmo tempo, Leléu está jurado de morte por Frederico Evandro, assassino de aluguel e irmão de Inaura, moça que foi por Leléu deflorada. No entanto, esse mesmo assassino de aluguel deve sua vida ao prisioneiro, visto que foi por ele salvo de um touro valente que o mataria não fosse pela intervenção do deflorador de sua irmã.
É em meio a toda essa confusão e a personagens os mais peculiares, como outros presos e também policiais, que, dentre outros aspectos, Osman Lins tece uma crítica ao autoritarismo presente no nordeste brasileiro, principalmente impetrado por figuras masculinas que, por trás de tanta macheza e virilidade, escondem suas inseguranças e corrupções de caráter.
Não é à toa que Lisbela, fugindo ao autoritarismo do pai e do noivo, decide abandonar sua zona de segurança e arriscar uma vida livre ao lado de um homem que, embora contra a lei, parece ser autêntico em relação ao que sente por ela, em detrimento da imagem de macho alfa que tem por obrigação social subjugar a mulher e, assim, dar mais uma prova de sua masculinidade.
Nesse sentido, parece-me que Osman Lins propõe uma inversão de papéis, onde é o prisioneiro quem está livre dessas nocivas amarras sociais, enquanto os homens de bem, livres de amarras físicas, estão presos por amarras morais, antagônicas à liberdade de ser em autenticidade e de sentir sem escrúpulos.
A segunda obra trata-se de O Papel de Parede Amarelo (1892), da escritora americana Charlotte Perkins Gilman (1860 – 1935), que narra a história de uma mulher que está padecendo de algum mal emocional – aparentemente, depressão.
Seu marido, médico renomado, a leva para uma casa de campo, onde espera que, afastada da sociedade e respirando ar puro, se cure desse mal, que, de acordo com ele, não é grave. Palavra de especialista. O irmão, também médico renomado, pensa o mesmo. Ora, quem seria ela para pensar diferente – embora sentisse diferente?!
Não querendo entrar em choque com o marido/especialista, a mulher decide se resignar e aceitar o tratamento. Na frente do marido, não pode demonstrar fraqueza, afinal de contas ele é tão amável, preocupado e bom no que faz que não seria justo da parte dela não demonstrar que está melhorando. Mas não está.
Na casa de campo, no quarto onde está alocada, também apenas pela vontade do marido, há um papel de parede amarelo, cheio de formas indefinidas e estranhas, que a incomoda. Ela tenta decifrá-lo, mas em vão. No entanto, tentar decifrar aquele papel de parede passa a ser sua única rota de fuga dentro da rotina que o marido, amavelmente, lhe impõe. De algum modo, o papel de parede amarelo e ela têm alguma ligação. É o que ela descobrirá ao longo da obra.
O conto é uma clara crítica social às condições às quais as mulheres do século XIX eram submetidas. Sob a tutela dos maridos e/ou outras figuras masculinas, as mulheres eram reduzidas a funções sociais pré-estabelecidas, não raramente contrárias à sua vontade.
A opressão sobre a mulher nem sempre é explícita. Pode vir sob a forma de preocupação, cuidado, função social, autoridade científica, etc. A fonte da opressão sequer precisa se saber como tal. Esse parece ser o mote do conto.
Gilman foi uma importante ativista, em função dos direitos das mulheres, entre o final do século XIX e o início do XX. O Papel de Parede Amarelo, em parte, é uma obra autobiográfica, visto que a autora também sofreu de depressão, que atribuía, sobretudo, a uma série de padrões sociais estabelecidos para a relação marido-mulher.
Essas duas grandes obras da Literatura – uma, do final do século XIX; a outra, da segunda metade do século XX – demonstram a capacidade das obras literárias de retratarem tão antiga e, infelizmente, ainda tão atual mazela social, a opressão contra as mulheres, que pode acontecer das mais diferentes formas, desde as mais explícitas, como a presente em Lisbela e o Prisioneiro, a partir do machismo que tem como subterfúgio “a moral e os bons costumes” de um povo, até as mais veladas, como o conto O Papel de Parede Amarelo demonstra, a partir de discursos de autoridade que infantilizam a figura feminina, fazendo dela mero receptáculo da vontade masculina, que se pretende superior.
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