
Entre o Sol, as ondas e a ciência: Relatos de uma expedição ao Parcel de Manuel Luís
Sob a coordenação do professor Antonio Carlos Leal de Castro, a equipe embarcou numa jornada de pesquisa e descobertas que reafirmam a beleza e, ao mesmo tempo, a vulnerabilidade do nosso patrimônio marinho.
Inspirado na poesia que Djavan imortalizou em 1989 com a canção "Oceano", trago aqui alguns relatos de uma vivência que, assim como a música, fala de imersão, profundidade e encantamento do Parcel de Manuel Luís. Tive a honra de integrar uma expedição científica a essa unidade de conservação marinha, um dos maiores e mais biodiversos recifes de corais da Margem Equatorial Brasileira. Sob a coordenação do professor Antonio Carlos Leal de Castro, a equipe embarcou numa jornada de pesquisa e descobertas que reafirmam a beleza e, ao mesmo tempo, a vulnerabilidade do nosso patrimônio marinho.
O dia da partida
“Assim,
Que o dia amanheceu”
Ao zarpar, éramos duas equipes embarcadas: uma a bordo do Navio de Pesquisa Ciências do Mar, orgulho da nossa UFMA, e outra no ágil catamarã Guará, sempre pronto para vencer as distâncias da costa maranhense. Já na saída, a paisagem da Baía de São Marcos nos lembrava o quanto somos privilegiados por esse encontro de águas. Ali, o Mearim e o Pindaré despejam sua força, misturando-se às águas atlânticas num espetáculo de correntes, nutrientes e biodiversidade. De um lado, a cidade histórica de Alcântara, com sua imponência colonial; do outro, a nossa Ilha do Amor, sempre envolta seus encantos. Um cenário que parece nos saudar antes mesmo de enfrentarmos o mar aberto.
Logo nas primeiras milhas náuticas, o cenário mudou. Nos deparamos com o imponente "estacionamento" de navios fundeados no mar territorial maranhense, um retrato da movimentação do nosso complexo portuário, um dos mais importantes do país. À medida que nos afastávamos da costa, os olhos eram atraídos por outra transformação: a cor da água. O tom pardo, carregado de sedimentos trazidos pelos rios, foi dando lugar a um verde profundo, sinalizando a transição entre as águas costeiras e oceânicas. Um verdadeiro dégradé marinho, resultado da diluição progressiva dos sólidos em suspensão e da variação na concentração de fitoplâncton e outros microrganismos.
Ali, começávamos a sentir, de fato, a dimensão física e simbólica do que é estar no Oceano.
Uma saudação dos golfinhos
“Vem me fazer feliz
Porque eu te amo”
Por volta das 50 milhas náuticas, já no final da tarde, fomos brindados com um daqueles espetáculos que só o mar aberto proporciona. O pôr do sol, com seus tons alaranjados e dourados, parecia acontecer ali, ao alcance das mãos. Em meio às brincadeiras da tripulação, alguém comentou: "Parece que o sol toca o oceano e faz as ondas borbulharem". Uma descrição poética e, de certa forma, precisa. Era um momento de pura gratidão e reverência à natureza.
Para coroar o entardecer, uma família de golfinhos decidiu nos acompanhar, nadando ao lado do Guará e protagonizando saltos e aproximações que pareciam uma conversa com a nossa equipe. Foram minutos de emoção genuína, daqueles que ficam para sempre gravados na memória de quem entende que o oceano é, antes de tudo, um lugar de vida, encontros e aprendizagens.
Com mais algumas horas de navegação, a noite finalmente caiu. Foi quando o céu se abriu em um espetáculo de estrelas. Ali, de forma quase física, percebemos o quanto somos pequenos diante da escala do universo. O balanço constante do catamarã seguiu ritmado pelas ondas, enquanto avançávamos milha após milha. Ao todo, foram 14 horas de navegação ininterrupta até alcançarmos o entorno do Parcel, onde passaríamos nossa primeira noite em mar aberto, cercados de água, vento e silêncio, com a expectativa de um amanhecer cheio de trabalho científico.
O trabalho começou
“Ninguém sabe o que eu sofri”
Como é comum nas primeiras horas em alto-mar, eu e alguns colegas ainda lidavam com os efeitos do enjoo e o desafio de se adaptar ao balanço constante das ondas. A bordo do Navio Ciências do Mar, a equipe iniciava a coleta de dados no primeiro de oito pontos de monitoramento ao redor do Parcel. Foram realizadas análises de qualidade da água, amostragens de sedimentos, registro da biodiversidade planctônica e até medições atmosféricas, compondo um esforço integrado para desvendar o funcionamento desse complexo e dinâmico ecossistema recifal.
Enquanto isso, a equipe do Catamarã Guará seguiu em direção a um dos cenários mais simbólicos da expedição: o naufrágio do navio cargueiro Ana Cristina. No local, realizamos filmagens subaquáticas da biodiversidade dos corais, da ictiofauna, da topografia do fundo marinho e das próprias estruturas remanescentes do navio, agora transformado em habitat marinho.
Tivemos a honra de contar com a orientação do Tenente Fonseca, do Corpo de Bombeiros Militar do Maranhão, mergulhador com impressionante experiência de 16 expedições ao Parcel. Sua tranquilidade, domínio técnico e profundo respeito pelo oceano foram fundamentais para garantir a segurança da equipe e permitir que vivêssemos uma das experiências de mergulho científico mais desafiadoras e emocionantes de nossas carreiras.
A sensação de mergulhar no oceano
“Vem me fazer feliz
Porque eu te amo
Você deságua em mim
E eu oceano”
Confesso que ainda me faltam palavras para descrever com precisão o que senti nos mergulhos. Foi uma mistura intensa de medo, coragem, curiosidade, satisfação e orgulho — uma verdadeira salada de sensações. Estar ali, submerso, em contato direto com um dos ambientes mais selvagens e incontroláveis do planeta, é algo que mexe com o corpo e a mente.
A gente sente a energia viva do oceano, um lembrete constante de que estamos apenas de passagem naquele território que é, por natureza, imprevisível e dominante. A imensidão azul nos envolve, e a sensação é de plena entrega. Naquele momento, fica cristalizado: ali, é a natureza quem comanda. Somos visitantes, com todo o respeito e humildade que esse status exige.
Hora de voltar
“Só sei
Viver
Se for
Por você”
Nossa expedição chegou ao fim no final da tarde, mas o oceano ainda reservava mais um espetáculo: mais um pôr do sol inesquecível, daqueles que só quem está a 170 quilômetros da costa consegue vivenciar. O céu e o mar se misturavam em tons de laranja e violeta, num adeus que parecia um até logo feito sob encomenda para encerrar aquela jornada.
Para celebrar, os tripulantes do Guará — Fracinaldo, Didi e o comandante Vanilson — decidiram nos surpreender com um churrasco improvisado a bordo. Imagine a cena: pôr do sol, a satisfação de dever cumprido, uma boa música tocando ao fundo, combustível emocional para encararmos as 14 horas de navegação de volta até a Marina da Ponta da Areia, já em São Luís.
Navegamos pela escuridão da noite costeira, mas ao primeiro sinal de luz, o horizonte anunciava nossa chegada em casa. Voltamos com o corpo cansado, mas com a alma cheia de inspiração e propósito renovado. Agora, é hora de seguir com a etapa silenciosa e igualmente importante da ciência: processar os dados em laboratório, elaborar relatórios, redigir relatórios e planejar as próximas campanhas.
A Margem Equatorial continua sendo um território de desafios, uma equação complexa, que coloca frente a frente duas variáveis nem sempre harmônicas: Desenvolvimento e Meio Ambiente. Uma relação que exige equilíbrio, ciência de qualidade e decisões baseadas em evidências. Somente a produção de conhecimento interdisciplinar e qualificado pode ajudar a resolver esse desafio.
Por isso, mais do que nunca, precisamos de uma universidade pública forte, com pesquisa de campo, imersão epistemológica e um compromisso inegociável com a formação de cientistas capazes de entender o nosso patrimônio marinho.
“Essa é a missão que me inspira — e que continuará me impulsionando nas próximas travessias rumo ao futuro”.
Saiba Mais
As opiniões, crenças e posicionamentos expostos em artigos e/ou textos de opinião não representam a posição do Imirante.com. A responsabilidade pelas publicações destes restringe-se aos respectivos autores.
Leia outras notícias em Imirante.com. Siga, também, o Imirante nas redes sociais X, Instagram, TikTok e canal no Whatsapp. Curta nossa página no Facebook e Youtube. Envie informações à Redação do Portal por meio do Whatsapp pelo telefone (98) 99209-2383.