(Divulgação)

COLUNA

Gabriela Lages Veloso
Escritora, poeta, crítica literária e mestranda em Letras pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA).
Gabriela Lages Veloso

Meia-Vida

Em 2020, a escritora portuguesa Ana Cláudia Santos publicou o seu primeiro livro de poesia: Meia-Vida, que conta com ilustrações do artista plástico João Massano.

Gabriela Lages Veloso

Ilustração: Bruna Lages Veloso
Ilustração: Bruna Lages Veloso

A poeta portuguesa Ana Cláudia Santos é host do podcast Multiversos, da rádio NiT FM, e produtora dos eventos de poesia “L.U.A. – Literatura, Universo, Artes” e “Sala Incomum”.

Além disso, é embaixadora do projeto “Agarra-te”, da SABSEG, e poeta residente da Casa Florbela Espanca. É formada em Literatura, pela UNL, e Escrita Literária, e, Produção e Marketing de Eventos, pela Restart Creative Education. 

Em 2020, Ana Cláudia publicou o seu primeiro livro de poesia independente: Meia-Vida, que conta com ilustrações do artista plástico João Massano, e foi lançado na Livraria Ler Devagar, em Portugal. 

Ao ler Meia-Vida, encontrei alguns enigmas do universo, e da existência, sobre os quais gosto de refletir e escrever. Me identifiquei com a escrita de Ana Cláudia, pois me lembrou meu livro favorito: Água Viva, de Clarice Lispector. 

Meia-Vida reúne 14 poemas de tom místico e filosófico, e apresenta uma jornada labiríntica (e borgeana) em busca dos mistérios da existência, tal como podemos notar no poema Princípio (SANTOS, 2020, p. 12-15):

 

Princípio

 

A primeira crise existencial do meu íntimo 

Foi num dia em que a minha casa estava com muita claridade. 

Foi assim que a minha criança de seis anos a fotografou.

A memória está pegada 

Mas viscosa. 

 

Na casa de banho do andar de baixo 

Os pormenores da divisão estão-me gravados 

Como dourados 

Resplandecentes 

O lavatório cor de ouro 

Os perfumes da minha mãe 

A banheira ornamentada 

E muita luz. 

 

Olhei-me ao espelho 

Que singularmente não emitia luz. 

 

Pensei: 

Esta pessoa sou eu 

Esta pessoa 

Sou 

Ser

Eu.

 

Um calafrio.

Uma sensação nunca antes sentida

Foi o que senti.

 

E mal sabia eu que me iria ser tão familiar.

 

O meu rosto não era o meu rosto 

Deveria ser, mas já não era.

Pela primeira vez via-me de forma desconhecida 

A minha visão via por outro prisma 

Outro 

Que reconheço agora qual é 

Mas na altura 

Me horrificou os ossos. 

Hoje e no futuro continua-me a horrificar. 

Aceitei-o há anos.

 

A sala de estar era uma divisão muito iluminada 

Estava decorada em tons verdes, pretos e castanhos claros. 

 

No meio da sala, pensei: 

O meu braço 

E verifiquei o meu braço

O quadro 

E verifiquei o quadro 

Isto está a acontecer

E verifiquei a realidade 

Eu estou a sentir

E senti a realidade a acontecer 

Pela primeira vez na minha vida 

Pela primeira vez na minha vida, senti-me a existir.

 

Percebi! Existo - e estou a existir!

 

Pensando no meu braço, sentia-me a ir embora

O medo da sensação de ir embora 

Horrificou-me de novo 

Tentei não pensar na sensação 

Pois excedendo certa orla 

Iria embora com a realidade. 

 

Estou aqui 

Aqui 

Não estou aqui 

Estou 

Não 

Estou

 

Uma sensação de horror começou 

E deixei ir o pensamento…………………. 

E o pensar fez-me sentir e ficar longe…………………. 

Longe da minha sala………………….

Senti-me oblíqua 

E senti-o para a eternidade desta vida. 

 

Sentei-me na posição pensadora…………………. 

E estreou-se aí a mágoa de pensar 

Muito, muito 

Sobre o que é isto 

E que vida é esta. 

Iniciou-se aí 

O peso do raciocínio que nunca chegou.

 

Mas existe um convite para que o(a) leitor(a) não seja um mero observador e também embarque nessa jornada, mapeando os sentidos. Por isso, o eu-lírico afirma: 

Ajuda-me a compreender que história é esta. Até agora sei que a minha alma existe ainda à procura do oásis da existência. O meu desígnio sempre foi encontrar a substância, a medula da minha presença nesta realidade” (SANTOS, 2020, p. 10). 

Assim, por entre espelhos, memórias, fragmentos do universo e reflexões, o eu-lírico chega à algumas descobertas: “A consciência sagrada não se atinge pela lógica”, “O cofre da terra não está na verdade da terra” e “O espírito não morre quando morre o corpo”. 

 

REFERÊNCIAS:

LISPECTOR, Clarice. Água Viva [1973]. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 2020.

SANTOS, Ana Cláudia. Meia-Vida. Lisboa, Portugal, 2020.

 

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