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COLUNA
Isaac Viana
Isaac Viana é psicólogo, mestre em Cultura e Sociedade, professor universitário e escritor.
Isaac Viana

Uma distopia chamada Brasil

A vida em sociedade é mais complexa do que parece ser. Não há respostas prontas para o nosso caos. Aliás, a única certeza é a de que precisamos melhorar como humanos.

Isaac Viana

Souza é um ex-professor de história. Agora, tudo o que tem é um furo na mão. Um furo que apareceu de repente. Adelaide, esposa de Souza, não suporta ver o furo e dá o fora.

Agora, muitas coisas já não são como eram antes. Não há mais árvores, animais, água e comida. A única água possível é mijo reciclado. A comida é factícia. Gosto de plástico e faz mal.

Mas o Esquema está resolvendo tudo, basta a população colaborar. Ficar em silêncio, sem reclamar. O pessimismo é o que atrapalha o governo. Ficar em silêncio ou falar e falar. A falação também é uma arma que o Esquema descobriu. Deixar a população falar e falar, até se cansar, ter a sensação de que está fazendo algo para mudar as coisas, quando, na verdade, tudo continua exatamente como antes. As gargantas secas se calam.

Souza, que ganhou um furo na mão, perde também o apartamento. O sobrinho, um Militecno, pediu para alojar três desconhecidos e depois ficaram com tudo. Os desconhecidos, supostamente, Souza já não acreditava, tinham descido do Nordeste, já que, na região, o sol está matando feito raio laser. A única proteção são guarda-chuvas de seda preta.

Em breve, no entanto, Souza confirmaria a verdade da história dos três homens, porque o sol começa a matar também em sua cidade, São Paulo.

Souza, furado, desapossado, abandonado, desesperançado e delirante agora anda por aí, cercado por multidão de miseráveis, sem ver país nenhum.

Não verás país nenhum é uma distopia brasileira, de Ignácio de Loyola Brandão, publicada em 1981. Nela, se pensa um Brasil no qual a ditadura militar nunca de fato acabou, apenas se camuflando, ora ou outra dando suas caras. Negar a ciência e os fatos históricos, incentivar o abuso do desmatamento e dos recursos naturais, tentar intimidar a imprensa e ridicularizar a classe artística são características dessa ditadura camuflada.

3% (2016 – 2020), por sua vez, é uma série brasileira, produzida pela Netflix, que também se passa num Brasil pós-apocalíptico em que a maior parte da população vive em situação de extrema pobreza. 

Divididos entre o Continente e o Maralto, as pessoas que vivem do Lado-de-Cá (Continente) esperam chegar aos 20 anos para tentarem, uma única vez, passarem para o Lado-de-Lá (Maralto), porque, se no Continente falta o básico para sobreviver, no Maralto, tudo é abundante.

No entanto, essa abundância não é para todos. Para desfrutá-la, é preciso "merecer". Esse merecimento é provado num evento anual chamado de "Processo", no qual todas as pessoas, de 20 anos, passam por uma seleção em que apenas 3% dos candidatos são aprovados. Aos 97% de reprovados, cabe uma vida miserável e, agora, de vergonha, por não terem sido aprovados, no Continente.

Apesar dessa temática distópica não ser novidade, a série é muito feliz ao retratar a realidade da desigualdade social que dá margem para discursos messiânicos oriundos das mais diversas ideologias.

Na série, num extremo, há quem se proponha a destruir o sistema, mesmo sem ter nenhuma proposta concreta do que fazer quando esse sistema for destruído. Enquanto isso, em outro extremo, o sistema em vigor defende ser o único viável, ainda que, na realidade, enquanto uma minoria desfruta do "bem e bom", a maioria vive aquém da dignidade humana. 

Alguma semelhança com nossa realidade? Alguma alternativa a esses extremos? Caso haja essa alternativa, como convencer esses extremos a acharem um ponto de equilíbrio? É possível esse ponto de equilíbrio ou é apenas mais uma utopia para ocultar o fato de que a vida humana é uma causa perdida? 

A vida em sociedade é mais complexa do que parece ser. Não há respostas prontas para o nosso caos. Aliás, a única certeza é a de que precisamos melhorar como humanos, e tanto 3% como Não verás país nenhum conseguem retratar bem essa complexidade. Não cair no maniqueísmo do "Vilão x Herói" pode ser um bom ponto de partida para superarmos essa distopia chamada Brasil.

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