Pessoas com deficiência e a cultura da exclusão
A inclusão das pessoas com deficiência é uma urgência que só será sanada com a mudança do nosso presente como reparação a um passado excludente e limitante.
Atualmente, discute-se a proposta de Educação Inclusiva e de como sua implementação pode ser relevante para a sociedade. No entanto, é interessante salientar que essa proposta nem sempre esteve presente nas organizações sociais, vindo a ser concebida, principalmente, no estágio Pós-Moderno.
Na Antiguidade Clássica, na Grécia, por exemplo, sabe-se que a educação acadêmica era exclusividade dos homens livres, o que não incluía guerreiros e escravos. De igual modo, em Roma, os escravos, tratados como meros objetos, eram excluídos do modelo educacional vigente.
De maneira semelhante, na Idade Média, a existência de homens escravos ainda era considerada algo natural, sendo esses, também, exclusos do modelo educacional vigente, o qual era exclusividade do clero e da nobreza. O que restava aos trabalhadores, então, era aprender pela tradição oral, que abarcava, principalmente, a cultura de sobrevivência.
No período subsequente à Idade Média, conhecido como Renascimento, aconteceram muitas descobertas no campo do conhecimento, como, por exemplo, a invenção da bússola, a expansão dos territórios geográficos dominados pelos homens a partir de construções de grandes embarcações, a invenção da imprensa, que permitiu maior disseminação do saber, o uso da pólvora e suas aplicações nas guerras, etc. No entanto, aqui, também, ainda não se pode falar em inclusão. Essas descobertas beneficiavam apenas o clero, os nobres e, agora, a burguesia emergente.
Chegada a Idade Moderna, deu-se o advento da Revolução Francesa, iniciando-se, assim, um período conhecido como Iluminismo. Nesse momento, começou-se a dar voz às liberdades individuais, em detrimento do absolutismo do clero e da nobreza. Entretanto, é relevante salientar que essa liberdade individual ainda não dizia respeito a todos, mas apenas à burguesia. Assim sendo, à classe dirigente, cabia a educação para governar; à classe trabalhadora, a educação para o trabalho.
Portanto, por mais que o modelo educacional vigente no Iluminismo possa ser considerado revolucionário – quando comparado aos modelos anteriores, já que, de modo contrário a esses últimos, defendia o humanismo igualitário e, consequentemente, o processo civilizatório universal –, ainda não se pode falar em “universalidade”, uma vez que a educação não era oferecida a todos indistintamente.
Foi apenas sob a égide do modelo socialista, na segunda metade do século XX, com sua proposta crítica e reconstrutivista para a educação – e, consequentemente, para a visão do papel do homem na sociedade –, que o conceito de Educação Inclusiva teve a oportunidade de emergir, ainda que não pronto, mas, sim, em construção, assim como se encontra ainda hoje.
Percebe-se, portanto, que, ao longo da história da humanidade, o âmbito educacional das sociedades tem sido perpassado por uma lógica de exclusão, o que significa dizer que, historicamente, apenas algumas pessoas têm sido privilegiadas com o acesso ao ensino formal nos mais diversos tipos de instituições de ensino vigentes. É a essa prática recorrente que o presente ensaio dá o nome de cultura da exclusão.
Segundo Zygmunt Bauman, em seu texto Cultura como Conceito (2012), existe certa dificuldade para que se possa chegar a algum consenso quanto ao conceito de cultura. Isso se dá porque essa é uma palavra utilizada com distintos significados, em diferentes contextos, tornando-se, assim, difícil de ser interpretada com o mesmo sentido. Ainda assim, em seu ensaio, o autor apresenta as três aplicações mais utilizadas do conceito de cultura. São elas:
- – Cultura como conceito hierárquico: pré-cientificamente, caracteriza-se as pessoas como cultas ou incultas. Nesse conceito, as pessoas cultas teriam ultrapassado seu estado de natureza; as incultas, nem tanto. Ou seja, o homem deve fazer com que sua essência, sua alma, aflore a partir de sua própria intervenção sobre ela. Desse modo, nesta perspectiva, não cabe falar em culturas, mas em A Cultura, no sentido de que existe um ideal de ser humano a ser alcançado, e isso só pode ocorrer por meio dessa Cultura hegemônica. No entanto, questiona Bauman, se existe um modelo ideal de homem a ser alcançado, quem o traçou? Provavelmente, a aristocracia (burguesia), no intento de se preservar no cume dessa hierarquia cultural;
- – Cultura como conceito diferencial: explica as diferenças visíveis entre comunidades de pessoas. Aqui, o ser humano não tem um padrão ideal, antes a maneira de ser homem é vista como sendo tão dinâmica quanto o tempo. Para o autor, esse conceito de cultura coaduna bem com o de relatividade, intrínseco à modernidade, onde a única coisa absoluta é que nada mais é absoluto. Sendo assim, de acordo com essa categoria, não existe A Cultura, em absoluto, mas, sim, culturas;
- – Conceito genérico de cultura: busca separar a espécie humana de tudo o mais, por intermédio de uma oposição entre o mundo humano e o mundo natural. Nessa perspectiva, apenas os homens têm cultura, e isso é o que os diferencia das outras espécies, sendo, ainda, a linguagem um dos principais elementos que separa os humanos das outras espécies, mas não apenas a linguagem enquanto uso do símbolo em si, e, sim, a capacidade de ressignificar esses símbolos; a capacidade de impor ao mundo novas estruturas.
Diante dos conceitos apontados por Bauman, pode-se inferir que o que o presente ensaio classifica como cultura da exclusão é oriundo do conceito de cultura como hierarquia, visto que, durante a maior parte da história, foi definido, hierarquicamente, quem podia e quem não podia fazer parte do sistema de educação vigente. Nesse modelo de funcionamento social, apenas algumas pessoas eram vistas como estando no topo da hierarquia cultural, e somente a elas, portanto, era permitido o livre acesso à educação formal – e isso garantia a manutenção do status quo.
Por sua vez, John B. Thompson, em seu livro Ideologia e Cultura Moderna: Teoria Social Crítica na Era dos Meios de Comunicação de Massa (1995, p.166), apresenta, dentre outros, o conceito de cultura estrutural. Para o autor, “(...) os fenômenos culturais podem ser entendidos como formas simbólicas em contextos estruturados; e a análise cultural pode ser pensada como o estudo da constituição significativa e da contextualização social das formas simbólicas”.
Dessa maneira, entende-se a cultura como uma construção simbólica que se dá no seio de um contexto de interações sociais, o que, de acordo com os pesquisadores D’Antino e Mazzotta, no texto Inclusão Social de Pessoas com Deficiências e Necessidades Especiais: Cultura, Educação e Lazer (2011, p.379), permite “(...) a construção e sedimentação de estigmas, estereótipos, padrões de beleza, dentre outras formas simbólicas acompanhadas de atitudes e ações em relação a pessoas que se encontram em determinadas condições individuais e sociais e que em contextos específicos passam a ser discriminadas negativa ou positivamente, tendo favorecida a concretização de situações de inclusão ou exclusão nos variados espaços da vida social”.
Ainda segundo os pesquisadores, “Historicamente, as pessoas que apresentam diferenças muito acentuadas em relação à maioria das pessoas constituem-se alvo das mais diversas estratégias de violência simbólica. Um dos segmentos populacionais reiteradamente colocados nessa posição tem sido o composto de pessoas com deficiências físicas, mentais, sensoriais ou múltiplas, além daquelas que apresentam outros transtornos de desenvolvimento” (p. 379). Percebe-se, portanto, que a violência simbólica, ou seja, o impedimento de que outros indivíduos ou grupos – como pessoas com deficiência, por exemplo – manifestem os próprios interesses, tem sido um fenômeno cultural recorrente ao longo da história, corroborando, assim, com a hipótese deste ensaio.
Por fim, e tratando-se em específico da exclusão de pessoas com deficiência, é interessante notar que, apesar do aparato legal que garante a inclusão de todas as pessoas no contexto educacional, ainda não se pode falar na superação da cultura da exclusão pela cultura da inclusão. E isso se explica porque, como afirmou Carvalho, em seu texto Experiências de Assessoramento a Sistemas Educativos Governamentais na Transição para a Proposta Inclusiva (2003, p. 47), “(...) atitudes não se modificam num estalar de dedos. Decorrem de um longo processo, geralmente sofrido e com obstáculos afetivos e cognitivos a serem superados”.
Assim como as atitudes humanas construíram a cultura da exclusão, espera-se que elas, as atitudes humanas, também construam a cultura da inclusão ao longo da história. A inclusão das pessoas com deficiência é uma urgência que só será devidamente sanada com a mudança do nosso presente como reparação a um passado excludente e, portanto, limitante.
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