(Divulgação)
COLUNA
Isaac Viana
Isaac Viana é psicólogo, mestre em Cultura e Sociedade, professor universitário e escritor.
Isaac Viana

A Literatura e a Psicologia de Anton Tchekhov

Em Tchekhov, normalmente, não há grandes tramas; o cotidiano é sua matéria-prima, do qual o autor extrai conteúdos quase que imperceptíveis para a maioria de nós.

Isaac Viana

Os grandes escritores russos são conhecidos por suas obras colossais, de profunda complexidade psicológica e, não raro, engajamento em pautas sociais. Essas características, no entanto, costumam afastar leitores, podendo deixar a impressão de que os russos não são acessíveis para todos.

Em alguma medida, Anton Tchekhov (1860 – 1904) destoa desse perfil. Ao invés dos pesados calhamaços, o autor marcou seu nome na história da literatura russa e mundial, sobretudo, a partir de pequenos contos publicados em jornais da época – embora também tenha se consagrado como grande dramaturgo.

O escritor, casado com a medicina e tendo como amante a literatura, como ele gostava de referir-se a si, sem fugir dos grandes temas da literatura russa de seu tempo, conseguia imprimir em seu jeito de contar histórias elementos cômicos que pareciam arrefecer o poder da dramaticidade das narrativas apresentadas ao público.

Em Tchekhov, normalmente, não há grandes tramas; o cotidiano é sua matéria-prima, do qual o autor extrai conteúdos quase que imperceptíveis para a maioria de nós. São detalhes que, de tão corriqueiros, parecem sem importância ou inofensivos, até que alguém, dotado de grande sensibilidade e de capacidade de percepção crítica fora do comum, mostra-os como que através de uma lupa, fazendo-nos ora rir, ora refletir sobre eles.

À guisa de demonstração das supracitadas características do autor, apresento ao leitor três dos seus mais aclamados e emblemáticos contos, a saber, A Senhora com o Cachorrinho (1899), A Morte do Funcionário (1883) e O Bilhete de Loteria (1887). 

Em A Senhora com o Cachorrinho, o leitor é apresentado a Gurov e Ana. Recém-chegada à cidade de Yalta, Ana – ou simplesmente a senhora com o cachorrinho – gosta de passear com seu animal de estimação e logo chama a atenção das pessoas do local, inclusive de Gurov, que, também visitante da cidade, ao perceber que Ana está sozinha, se aproxima e tenta entabular uma conversa com ela, no que é bem sucedido.

Passados alguns dias, ele e ela, ambos casados, iniciam um romance proibido, que pretendem que dure apenas até precisarem ir para casa, ao encontro de seus cônjuges.

Gurov, acostumado a se relacionar com diversas mulheres, traindo, assim, a esposa, acredita que esse é apenas mais um entre tantos encontros casuais. Já de volta à Moscou, contudo, dias e dias se passam e a memória de Ana não lhe sai da cabeça. É quando ele decide ir à Peterbusgo, ao encontro da dama. O encontro é decisivo para os dois.

Esse é um enredo com potencial de afastar o leitor avesso às narrativas românticas, mas, caso esse leitor se permita iniciar a leitura, logo se surpreenderá com a capacidade narrativa do autor, que, mais do que apresentar uma história romântica, se aprofunda nas motivações e disposições humanas para amar; discute sutilmente convenções sociais, muitas vezes eivadas por hipocrisias; e projeta a condição efêmera da existência humana diante da complexidade da vida – dentre tantos outros atributos tão peculiares do escritor que seria impossível reduzir a obra em questão a apenas mais uma história de amor.

Se, ao pensar em literatura russa, o leitor só consegue vislumbrar um texto denso, de tom grave, a la Dostoiévski (1821 – 1881) e Tolstói (1828 – 1910) em seus grandes romances, ler o pequeno conto A Morte do Funcionário pode ser uma experiência, no mínimo, surpreendente.

Nesse texto de Tchekhov, acompanhamos a jornada psicológica de Tcherviakov, que está num teatro, assistindo a uma peça em estado de completo arrebatamento, quando, de repente, espirra; algo natural. Ao olhar para a frente, entretanto, vê um senhorzinho limpando a nuca e a cabeça e murmurando algumas palavras, bem baixinho.

Tcherviakov reconhece o homem, que é um general, e logo pede desculpas. O homem diz que não tem importância, que ele não precisa se preocupar.

Nosso protagonista, todavia, não se convence das palavras do general e tenta, em várias outras ocasiões, se desculpar, o que acaba sempre dando errado, não porque o general não o tenha desculpado, mas, sim, porque Tcherviakov nunca se convence de que foi desculpado, e, de tanto procurar o senhorzinho para lhe pedir desculpas, indo inclusive ao seu escritório de trabalho, o deixa realmente zangado – e quanto mais zangado o homem fica mais Tcherviakov tem certeza de que não foi desculpado.

O texto é de um senso de humor irretocável, sem deixar de abordar, porém, assuntos relevantes – e isso, na verdade, o humor permite de modo muito peculiar  –, conduzindo, assim, o leitor a reflexões necessárias, como, por exemplo, o pensamento acerca da complexidade da psicologia humana no que diz respeito ao sentimento de culpa e ao desafio que é conviver em sociedade.

Por sua vez, no conto O Bilhete de Loteria, tem-se um homem, classe média, que vive satisfeito com sua esposa e filhos. Certa feita, enquanto ele lê o jornal do dia, a esposa pede que ele veja o resultado de um jogo que ela havia feito.

Ele, que não é de acreditar em jogos de sorte, ao ver o resultado, se surpreende. A série de números sorteada é a da esposa. Sem acreditar, olha para ela e ela, para ele, a alegria na face de ambos. Mas ainda falta ao marido ver o número do bilhete, para averiguar se também é o mesmo que a esposa jogou e, assim, terem a certeza da premiação.

No entanto, o êxtase pela possibilidade da vitória é tanto que, antes de o marido ver o número do bilhete premiado, eles já começam a fazer planos de como irão gastar o dinheiro.

Tchekhov, daquela maneira que é tão peculiar à literatura russa, conduz o leitor para dentro da cabeça do marido e da esposa, ambos, a priori, com pensamentos os mais felizes possíveis acerca da nova vida que poderão levar dali em diante.

Esses pensamentos, contudo, cavalos desgovernados, que de início são apenas felizes, começam a se conduzir também para possibilidades ruins que esse prêmio poderá acarretar para cada um dos cônjuges, de modo que, de desejada, a possibilidade do prêmio começa a perder o brilho e, pior, altera a percepção que os personagens têm da própria vida. Ao final do conto, o marido, que é quem recebe maior destaque na obra, já está insatisfeito com a vida que, poucos minutos atrás, lhe era o suficiente para ser feliz.

O texto traz à tona, dentre tantas outras possíveis, a reflexão de que, quando comparamos nossa vida entre o que temos e o que supostamente poderíamos ter, sempre nos parece faltar algo; há sempre uma realidade conflitando com um mundo ideal. É preciso, portanto, que se saiba discernir quando o contentamento é a melhor das opções.

As opiniões, crenças e posicionamentos expostos em artigos e/ou textos de opinião não representam a posição do Imirante.com. A responsabilidade pelas publicações destes restringe-se aos respectivos autores.

Leia outras notícias em Imirante.com. Siga, também, o Imirante nas redes sociais X, Instagram, TikTok e canal no Whatsapp. Curta nossa página no Facebook e Youtube. Envie informações à Redação do Portal por meio do Whatsapp pelo telefone (98) 99209-2383.