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COLUNA
Lourival Serejo
Lourival Serejo é desembargador do Tribunal de Justiça do Maranhão e membro da Academia Maranhense de Letras.
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Cem anos de O Processo, de Kafka

Neste ano de 2025, comemora-se o centenário de publicação do romance O processo, de Kafka, um dos maiores monumentos da literatura universal.

Lourival Serejo

Neste ano de 2025, comemora-se o centenário de publicação do romance O processo, de Kafka, um dos maiores monumentos da literatura universal.

O notável desse livro é que ele é atemporal. Depois de tantos anos, continua atual, pois a profundeza do tema tratado nessa obra ainda desperta as mais variadas discussões. 

O roteiro do livro começa com uma cena que se adapta ao conceito de absurdo, tão bem aprofundado, posteriormente, por Albert Camus.

Ao amanhecer, o bancário Joseph K., no dia do seu aniversário de 30 anos, é surpreendido, ainda na cama, pela presença de dois agentes do tribunal, notificando-o de que estava detido, devido a abertura de um processo criminal que o colocava na condição de acusado.

Então, aqui, surge o ponto nodal da genialidade do escritor: do começo ao fim do livro não se sabe qual é a acusação que lhe é feita. Isso também é secundário, a questão principal é: por quem sou acusado? Que autoridade conduz o processo? 

O tribunal é inacessível, assim como seus juízes. A burocracia é intrincada e indiferente ao sofrimento alheio. O acusado rodopia por quartos insalubres, escuros, buscando informações de pessoas de todos os níveis, a mínima que seja. Até a mulher de um oficial de justiça foi abordada no propósito de conquistar uma aliada para desvendar os labirintos do seu processo. E mais ainda: ao saber que o pintor Tintorelli, que pintava perfis dos juízes, era conhecedor dos meandros do tribunal, Joseph K. não hesita em procurá-lo em sua humilde residência. Atento, ouve a informação do pintor: O tribunal nunca é dissuadido. Se eu pintar todos os juízes numa tela, um ao lado do outro, e se o senhor se defender diante da tela, terá mais êxito do que diante do verdadeiro tribunal. 

Temos, assim, o procurador de um banco sendo processado por uma imputação desconhecida, vertida num processo inacessível para as partes, inclusive para o acusador, sem prazo para findar-se, mantendo-se o acusado com uma espada de Dâmocles sobre sua cabeça.

Essa centenária obra de Kafka só foi lançada após a sua morte, por dedicação do seu amigo Max Brod. A princípio ficou desconhecida nas livrarias. Anos depois é que foi descoberta como uma obra prima da literatura universal. É preciso que fique esclarecido que o valor dessa obra, a ponto de elevar-se ao patamar de um romance clássico, deveu-se, além do enredo labiríntico, à técnica empregada, à estética, ao estilo claro, escorreito, enfim, à arquitetura do romance.

Não passa despercebida a última frase grandiloquente do romance, depois de receber sua pena. Ali está a síntese da avaliação crítica, autopunitiva, que o autor faz de si mesmo, comparando-se com um cão, no seu ambiente de convivência, inclusive familiar, para lembrar as imagens de A Metamorfose.

No aspecto jurídico, é impossível conceber-se uma acusação sem direito de defesa, depois do pleno conhecimento do teor da acusação. Ocorre que no cenário absurdo em que foi envolvido o bancário Joseph K. ele se tornou – e foi apontado por todos os seus conhecidos – um acusado sustentando sua inocência por não saber de que estava sendo acusado.

Na linha do absurdo da narrativa kafkiana desponta-se a difícil relação do acusado com seu advogado Huld. Para ser recebido por ele, em sua casa, precisava da interferência da empregada que cuidava dele, que vivia sempre deitado, em sua cama, com seus queixumes de saúde. E as falas do advogado para seu cliente são sempre vagas, sem nada de concreto, não deixando esperanças para Joseph K. A defesa, na verdade, não é realmente admitida pela lei, apenas tolerada, e há controvérsia até mesmo em torno da pertinência de deduzir essa tolerância a partir das respectivas passagens da lei. 

Ainda mais inexplicável é a postura de outro acusado, o comerciante Block, que passa a dormir na casa do advogado, aguardando o dia e a hora que poderá ser chamado para ser atendido. 

Outro aspecto, ainda nessa área jurídica, que precisa ser considerado pelos leitores é que a familiaridade com que Kafka descreve os meandros obscuros do sistema judicial só foi possível porque ele era advogado, permanente advogado do Instituto de Pensão em que trabalhava. Nessa condição, dava pareceres e participava das audiências. 

O que é indiscutível é que, cem anos após o lançamento de O Processo, este continua sendo reconhecido como uma obra-prima da literatura universal. 


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