Perdas sem o São João

Sem apresentações, grupos juninos calculam perdas na arrecadação

Cadeia produtiva foi seriamente afetada; negócios ligados à alimentação, transporte e artesanato foram atingidos com a ausência de programação

Thiago Bastos / O Estado

Atualizada em 11/10/2022 às 12h16
Na pandemia, Darlan Passos trabalha na manutenção e reforma das indumentárias do Boi da Floresta
Na pandemia, Darlan Passos trabalha na manutenção e reforma das indumentárias do Boi da Floresta (Darlan Passos - boi da Floresta)

São Luís - A ausência de apresentações juninas, sem o calendário tradicional do período, por causa das medidas restritivas e necessárias implantadas durante a pandemia do coronavírus, retirou o poder de arrecadação da cadeia produtiva envolvida neste período do ano.

Além dos grupos tradicionais que, sem os acordos comerciais, registram queda nos valores recolhidos para o custeio de despesas básicas, como pagamento dos colaboradores, quitação de água e luz da sede, alimentação, vestuário e outros custos, outros profissionais direta e indiretamente envolvidos na tradição da festa veem suas capacidades lucrativas cessarem sem as exibições presenciais.

Segundo a atual medida vigente – até o fechamento desta edição – eventos com até 100 pessoas permaneciam liberados. Neste sentido, a cultura popular dos grupos folclóricos (bumba-boi, cacuriá, tambor de crioula, dança portuguesa e outras manifestações) perde sua alma, sem a junção dos fãs tão representativa e marcante da festa.

Além da incalculável perda para o mercado local, o cancelamento das festas – em arraiais como os da Maria Aragão, do IPEM, do Parque Folclórico da Vila Palmeira, do Cohatrac e outros – interfere nos segmentos da cadeia do turismo, de serviços, de transporte e outros segmentos.

Instituições do setor, por ora, ainda não detalharam o percentual de perda para as finanças. O Estado decidiu, além de acompanhar manifestações de bumba-boi tradicionais da capital, saber o que tais grupos fazem para manter minimamente a essência do termo cultura, que remete ao cultivo e, ao mesmo cuidado com a preservação das tradições.

Os ateliês, os locais de ensaio e espaços que anteriormente eram usados para os preparativos musicais e outros ajustes deram lugar à melancolia, ao ostracismo e, principalmente, à amargura por não saberem se esses tempos tão difíceis, algum dia, passarão.

Neste misto de dor e incerteza, nasce em paralelo uma esperança de dias melhores e um sentimento, ainda que baseado na fé e outras crenças, de que em 2022 tudo será diferente. Para isso, será necessário por ora um avanço na vacinação que, a princípio, não faz crer em uma festa no ano que vem “como nos velhos tempos”.

Do jeito que a saudade está, vale bater matraca e tambor, ou tocar o chocalho até mesmo de máscara.

Ainda que de forma tímida, algumas brincadeiras ainda tentam manter o mínimo de rotina cultural.

Festa pós-pandemia sob a batuta de Mundoca
Nascido no dia 11 de novembro de 1939, o conhecido Mestre Mundoca - originário da forte São Bento, tradição da Baixada Maranhense – teve o seu perfil traçado sob as talentosas mãos de Gil Leros nos muros da sede do Grupo Mirante, localizada na Avenida Ana Jansen, no São Francisco. Morador do próprio bairro, da Rua 5 e contemporâneo dos bons tempos de parceria com Mestre Apolônio, a história de Mundoca se mistura com um dos grupos mais marcantes da nossa festa tão forte.

Mestre Mundoca, ao vir para a capital maranhense aos 17 anos, em meados do fim da década de 1950, conheceu até então Apolônio Melônio e, em 1972, fundaram o Boi da Floresta.

Segundo a própria direção do Boi a que tanto ama, Mundoca recebeu o apelido a partir um homenagem do avô, chamado de “Doca”. Ao fazer parte do projeto “Amo, Poeta e Cantador”, que faz referência aos grandes nomes e é uma realização do Bumba meu boi da Floresta e do artista Gil Leros, com o apoio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

É a partir da devoção e do amor demonstrado por Mundoca que o Boi da Floresta, ainda que sem apresentações e com calendário apenas com a previsão de atividades internas, mantém a energia para a vivacidade da tradição da festa.

Com restrição de colaboradores (apenas os mais jovens trabalham na sede da festa, situada na Rua Tomé de Sousa, no bairro conhecido da Liberdade, reduto quilombola da Grande Ilha), integrantes executam, por ora, apenas trabalhos de manutenção das indumentárias, dos instrumentos e ensaios com número limitado de pessoas (no máximo 10).

O grupo é atualmente coordenado por Nadir Cruz. Mulher de fibra e com senso de justiça e da importância da cultura, Nadir é quem mantém uma das representações do ritmo conhecido do interior maranhense.

Ela é responsável por desde a escolha das toadas e ensaios à compra das “penas de ema” para o cocar dos chapéus e contato com os armarinhos – nos anos em que a festa ocorre normalmente e sem percalços – e posterior produção das ornamentações das peças usadas pelos brincantes.

Segundo ela, preliminarmente, as perdas calculadas pelo Boi da Floresta sem apresentações na capital e no interior são de 90%. “Com isso, não somente o grupo nosso deixa de arrecadar, como toda uma cadeia produtiva necessária também deixa de receber. É preciso responsabilidade e entender que, de forma alguma, não é o momento para aglomerações e, tampouco, promoções de festa. Por respeito, nossas manifestações estão praticamente suspensas”, afirmou.

Ainda de acordo com a coordenadora, no dia 23 deste mês, será realizado na sede do grupo o marcante batizado do boi. Inicialmente, o planejamento era fazer o ato entre os dias 23 e 24 de junho, sob as bençãos de São João. No entanto, a tradição será reservada para alguns membros. Os veteranos permanecerão em casa, acompanhando via live e com um diferencial. “Os integrantes estarão em casa com as indumentárias durante o batizado, como se estivessem na sede do grupo. É uma forma de manter as raízes e, ao mesmo tempo, de seguir minimamente com a tradição e, claro, protegendo os membros mais antigos do grupo”, disse.

O Boi da Floresta, de acordo com a direção do grupo, perdeu seguidores e colaboradores devido à pandemia da Covid-19. Outros fãs mais fiéis, ainda que com receio do vírus, seguem com dedicação o zelo pelo grupo.

Cantador que “morre de medo” do vírus
Desde os 8 anos de idade, o atual cantador da brincadeira da Liberdade, Darlan Passos, começou a frequentar o barracão e a gostar da festa a partir da influência da avó. Hoje, o jovem colaborador – beneficiado com o recebimento de valor emergencial via Lei Aldir Blanc – vive cada segundo com fervor das festas juninas e, diante de uma situação inédita para a vida de todos, também se vê impossibilitado de curtir a festa. “Eu morro de medo de pegar esse vírus, algumas pessoas até me falaram para eu não sair de casa, para ter cuidados, mas na verdade estou tendo sim estes cuidados”, disse.

Seu trajeto único na pandemia é de casa até a sede do Boi da Floresta, para auxiliar na manutenção, reforma e confecção de novas indumentárias. Sua especialidade é a produção de chapéus de pena, cuja produção é uma arte repassada de geração para geração e que, nos grupos, serve de preservação dos bens e, ao mesmo tempo, como terapia.

Não foram poucos os casos de pessoas que, de acordo com a organização do grupo, tentaram recorrer ao suicídio e as drogas para minimizar os efeitos da tristeza e preocupação causados pela Covid-19. Não foi o caso de Darlan Passos que, por precaução e necessidade, se ofereceu para a produção artesanal de chapéus e outros itens.

Para ele, é importante participar do grupo sempre. “Eu amo participar, seja de qual forma for, da minha brincadeira. Infelizmente, a gente está nesta situação difícil, sem apresentação e sem perspectiva, mas se Deus quiser logo estaremos com nossa gente, participando dos arraiais”, afirmou.

Além da arte da confecção de itens usadas pelos brincantes, Darlan é também um cantador e tanto. Um ofício repassado para os mais jovens. “Eu sempre que vinha com minha avó gostava de ouvir as músicas e os cantores. Fui cantando e me acostumando, memorizando as letras das músicas. Não poder fazer isso nos arraiais, no momento, é motivo de frustração sim”, disse.

Angústia de ver o boi parado
Outra integrante jovem do Boi da Floresta é Gisele Ferreira. Também desde cedo, passou a frequentar a sede do grupo e é uma espécie de “faz tudo”. Desde integrante dos ensaios à confeccionadora das roupas, a agora dona-de-casa reconhece o momento único da cultura, com a pandemia. “Mesmo nova, nunca tinha visto isso. Em tempo de junho, no barracão, aqui estava fervendo, com a gente se preparando para a noite de programação. Desta vez, estamos todos em casa, de forma correta, mas ainda sem entender quando isso vai passar. Ver meu grupo de bumba-boi parado me dá angústia, mas é necessário”, afirmou.

Boi da Floresta na Universidade
Mesmo sem programação, a marca do Boi da Floresta é reconhecida nacionalmente. A prova disso é o foco de estudo de pesquisa da Universidade de Campinas (Unicamp), por intermédio da maranhense Luíza Fernandes. Ela abordará na peça escrita os aspectos da musicalidade do sotaque típico da baixada. “A toada tem um tom marcante, com passadas desde os instrumentos ao uso dos pés. Mesmo com a pandemia, precisamos manter viva a chama dessa cultura tão forte no Maranhão”, disse.

Ela esteve, nas últimas semanas, na sede do grupo na Liberdade e colheu depoimentos, além de produção de imagens, mantendo distanciamento e higienização dos equipamentos.

MAIS

Antes do batizado, no dia 13 deste mês, o Boi da Floresta organizou a ladainha, que marcou uma espécie de ensaio final para as apresentações (de forma simbólica). A programação para o período junino pandêmico começou no sábado de Aleluia, com a abertura do ciclo religioso.

Outros bois também calculam os prejuízos

Na primeira metade do século XIX – por entre mangueiras seculares – o antigo Sítio Bacuri (que originou o bairro Maracanã) recebeu os seus primeiros habitantes. A partir da segunda metade do século XIX, famílias conhecidas como os Algarves, os Coutinho, os Pereira, os Barbosa e tantas outras começaram a vislumbrar um futuro promissor nas terras que ainda se encontravam distantes das principais localidades daquele tempo.

Foi a partir da força de um homem chamado José Martins, antigo morador, que o “Boi de Promessa” se estabeleceu no Maracanã. Uma marca construída em meados da década de 1950 por intermédio de pessoas como seu Lourenço, Murilo Vitor, Zé Pé, Naide cujos herdeiros de sangue ou de fé vivenciam uma realidade em 2021 completamente diferente.

Sem apresentação, grupos como o tradicional boi da terra da Juçara na Ilha calculam prejuízos. “Na verdade, nunca deixamos de arrecadar tanto, mas é a realidade. Estamos nos virando para manter o grupo”, disse uma das responsáveis pelo Boi de Maracanã, Maria José Soares.

Nesta sexta-feira, dia 18, o grupo se apresentou em uma live no Ceprama, via patrocínio de uma empresa do ramo de comunicação. Mesmo com agendas, segundo os organizadores, o faturamento ainda não é suficiente.

Outros grupos, como o Boi da Maioba, sob as bençãos de João de Chica e Calça Curta e atual condução dos descendentes usam da criatividade e intensificam agendas incomuns mas que, com medidas de precaução social, mantêm a proteção contra a Covid e, de forma simultânea, a essência da festa.

No dia 23 deste mês, véspera de São João, de acordo com a direção do grupo, será realizada a Romaria da Maioba. Com saída programada para às 22h da referida data do Viva Maioba, o cortejo percorrerá as ruas e avenidas de São Luís ao som artificial do batalhão pesado.

Esta será a segunda edição consecutiva da romaria com veículos. O evento, que terá cobertura da Mirante FM, tem como tema “Meu Mundo é a Maioba”. “Mais uma vez, não tenho dúvida de que faremos um grande evento, mantendo o distanciamento, mas não deixando de marcar uma data que para os boieiros e maiobeiros, em especial, é única”, disse um dos nomes mais importantes da história da Maioba, Zé Inaldo, cuja descendência de Calca Curta, um dos nomes mais importantes da história do Boi da Maioba, dá condição de falar sobre o tema.

SAIBA MAIS

Se João de Chica e Calça Curta foram os primeiros responsáveis pela fase inicial do Boi da Maioba, outros nomes como Dá na Vó, ou Luiz Rosa Gonzaga (primeiro amo do boi) também são lembrados. Dá na Vó foi responsável por “começar a cantoria” e se destacou em um contexto de grandes nomes, como Hilário, Germano da Mata, Luiz Costa, Januário e outros. Estes e outros, somados a João Chiador, consolidaram o nome da Maioba entre as referências para Bumba meu Boi no estado.

Arraial é na Mirante, mas de um jeito diferente...

O fim de semana não terá só de lamentações, tendo em vista a ausência de programação junina. O Grupo Mirante, mantendo o seu compromisso com o entretenimento, exibe neste sábado, dia 19, após a novela Império, na TV Mirante, o especial “Nossa Fogueira”.

O programa, repleto de atrações culturais, será apresentado por Lucas Vieira (do portal G1 Maranhão) e Heloísa Batalha (da Mirante FM) e terá atrações culturais, como bumba meu boi, tambor de crioula e cacuriá.

A atração exibirá cinco grupos de bumba meu boi, um de cacuriá e um de quadrilha que se apresentaram no palco do Teatro Arthur Azevedo, em São Luís, para levar o São João até a casa dos telespectadores maranhenses.

Ao portal G1, a gerente de programação da TV Mirante, Viviane de Paula, disse que a ideia de fazer o especial de São João “Nossa Fogueira”, partiu da necessidade de preencher o grande vazio que a pandemia ocasionou. “Pelo segundo ano consecutivo, não vamos ter São João nem arraiais. Então foi uma tentativa de aproximar o telespectador dessa experiência de estar em um arraial. Por isso, criamos um programa, com a preocupação de levar as principais atrações do São João”, afirmou.

Para Lucas Vieira, que também integrou a equipe do portal Imirante.com, fazer parte da programação junina da Mirante é um prazer. “Sem a presença e organização dos arraiais, eventos como este ganham ainda mais responsabilidade, pois temos que compensar de alguma forma a ausência dos arraiais com eventos virtuais. Tenho certeza de que o público da Mirante gostará da nossa festa”, disse.

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