São Luís - Artistas são dramáticos, não sei se você sabe. Bem, pelo menos parte deles, e eu me incluo nessa categoria. Assim que a notícia da pandemia se espalhou, meu cérebro começou a enviar repetidos sinais de alerta, não só pelo risco de pegar a Covid-19, mas também pelo perigo de ficar em casa, trancada com meus próprios medos e ansiedades. Logo pude imaginar meses de definhamento criativo, horas dolorosas em frente ao papel em branco rezando para uma boa ideia surgir. O medo de ficar paralisada durante todo o período pandêmico era, veja bem, paralisante.
Pensamentos erráticos e desesperados começaram a trazer questões sobre a minha produção. Acredito que uma das funções do artista seja expressar sua forma de ver o mundo e o período de tempo em que se insere, mas isso me travava. Eu não me sentia segura para contar para o mundo o que eu entendia do mundo, até porque 2020 não tá me deixando entender muita coisa. A saída foi olhar para dentro – talvez o que eu esteja passando, sentindo, vivendo, seja também a realidade de outras pessoas – e isso me ajudou a criar.
Com medo de me sentir atrofiada e de entrar numa espiral de ansiedade, estabeleci uma meta criativa diária, impondo a mim mesma pelo menos um compromisso com a arte para os dias de clausura. Já calejada das minhas inseguranças, sabia que, se eu desenhasse poucas linhas, seria o suficiente para sentir menos culpa. Tentar criar durante a pandemia é como estar em alto mar sem remo, sem velas e sem motor, mas conseguir ver terra firme: você não consegue chegar lá, mas sabe em que direção fica o porto seguro. Então, não perca o foco.
Foi assim que criei um Diário de Quarentena, um caderno em que coloco desenhos sobre os meus sentimentos, diariamente. Mapeando meu dia, minha caderneta de esboços passou a ser minha régua, minha medida para conferir se estava mais perto ou mais longe da terra firme.
De fato, o compromisso diário com a arte me motivou a continuar criando e algumas séries nasceram nesse ínterim - a maioria delas sobre meus sentimentos. Se dizem que a arte é o retrato do seu tempo, a minha arte foi o retrato do meu tempo particular.
Passei três meses na mais profunda lua de mel com minha artista interior. Criação e movimento. Tudo funcionava bem. E quando entramos no quarto mês de quarentena: nada, zero, finito.
Como diria Julia Cameron, em “O Caminho do Artista” (Sextante, 2017), eu estava passando por uma seca criativa, aquele momento em que parece que você nunca mais terá outra ideia na vida. Isso pode ser extremamente ameaçador, principalmente se a sua existência está sendo cerceada por uma ameaça viral global.
Acredito que muitas pessoas estão passando por isso, não só artistas. Pessoas das mais diversas profissões e modos de vida podem estar se sentindo em uma terra morta. Falo sobre criatividade para além da arte. Com a retirada repentina da nossa liberdade, a gente pode mesmo se sentir perdido, sem saber o que fazer com o tempo livre, com as pessoas que moram conosco, com a gente mesmo, com a solidão.
Para resolver nossas questões, para manter os olhos firmes nos cais, também somos criativos. Sendo expulsos compulsoriamente, sem aviso prévio, da nossa zona de conforto, tivemos que nos virar com o que tínhamos em mãos para ir a uma batalha contra um inimigo invisível e isso, de certa forma, nos impulsionou. É como aquele seu primo chato que implica com seu medo de altura e, na primeira oportunidade, lhe dá aquele empurrão para o vazio, que era, na verdade, uma piscina nem tão funda, nem tão alta assim. Você fica com raiva por não ter escolhido a hora para pular, mas talvez se tivesse que escolher, nem pulasse. No final das contas, você percebe que dá conta. É doloroso, assustador, mas você dá conta e isso dá forças também. Você começa a ser criativo para viver em tempos complicados. Afinal, a criatividade não vive só na arte.
Criatividade é ação. Se você não agir, a criatividade é só uma ideia boa que você teve e que, na verdade, nem sabe se é boa mesmo, já que não a colocou em prática. Então nos colocamos em movimento. Fazendo um bolo solado, pão queimado e festas online. Achamos que seria uma boa ideia nos arrumar para ver um show na TV – e foi mesmo. A criatividade para recriar a rotina com um pouco de novidade ao cotidiano ajudou e ainda nos ajuda a sobreviver.
Estamos sendo criativos o tempo todo. Seja para ficar em casa, seja para realinhar relacionamentos, seja para conseguir dinheiro para pagar os boletos que insistem em chegar. A criatividade é necessária para vencer tempos tão sombrios.
Estabelecer um desafio criativo diário me ajudou não só artisticamente, mas também pessoalmente. Me ajudou a manter um ritmo, impulsionando-me para terra firme. E mesmo quando me sentia um pouco distante dela, seguia fazendo, seguia criando, ainda que não gostasse do resultado. O fazer é o combustível. O produto é consequência do prazer que é colocar algo que estava dentro de você no mundo. Traduzir seus sentimentos, sua visão, transformar algo completamente abstrato em algo palpável, visível, é aí que vive a magia da criação. E assim a gente segue. Se desafiando, entrando e saindo de secas criativas, duvidando e confiando em nós mesmos. Lutando não só contra um novo vírus, mas também com nossos monstros internos.
É preciso ter calma. Como bons marinheiros, devagarinho vamos aprendendo a navegar com a certeza de que o vento logo vai voltar a soprar, a corrente finalmente vai virar e seremos levados no acalento das ondas para terra firme... outra vez.
To do list para manter-se criativo:
1 – Crie uma rotina. Manter horários para as principais ações do dia podem ajudar-lhe a se organizar.
2 – Escreva. Escrever três páginas diariamente por livre associação pode ajudar a acomodar suas ideias.
3 – Busque referências. Encontre artes, cores, lugares, cheiros, pessoas, músicas que te agradem. Aumente seu repertório
4 – Se dê tempo para fazer nada. Curtir o ócio, sem celular, sem interferências e sem culpa. Ficar parado também é fazer alguma coisa.
5 – Desafie-se. Crie desafios criativos possíveis de fazer. Escrever uma palavra sobre o seu dia já pode ser um exercício para manter-lhe em movimento.
6 – Faça. Tente colocar suas ideias em prática sem pensar no resultado final. O importante é o fazer.
7 – Divirta-se. Criar é para ser divertido. Não se prenda ao que você acha que o mercado te pede, apenas coloque para fora o que tem aí dentro.
*Leila Kelly é artista visual, professora e produtora cultural. Mestre em comunicação e semiótica na PUC-SP, possui graduações em Artes Plásticas e Comunicação Social.
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