A sobrevivência do personagem

Os "parentes" e a volta da tradição: fofões sobrevivem

Com o passar dos anos e aspectos modernos da sociedade, a tradição dos fofões foi se perdendo; ações específicas tentam retomar a prática de se vestir com máscaras na folia

Thiago Bastos / O Estado

Atualizada em 11/10/2022 às 12h21

[e-s001]Até o início da década de 1990, era comum ver ruas da cidade, especialmente nos bairros mais populares, com grupos incontáveis de fofões. Entre amigos, tornou-se uma tradição se vestir de fofão e sair pelas ruas, seja dançando, ou cantando marchinhas ou, principalmente, assustando os amigos.

No entanto, aspectos ligados à tecnologia e modernidade e a perda de valores (como o repasse da brincadeira de geração para geração) foram fundamentais para este processo. Além disso, a festa criou outras formas de manifestação e “renegou” determinadas tradições. Apesar disso, há quem queira o fofão de volta e, para isso, se apega aos fatos que foram fundamentais na história para a criação do personagem.

Período colonial e o surgimento da figura do fofão
O Brasil, por sua colonização portuguesa, se adequou ao calendário luso. Nos dias que antecediam à Quaresma, a igreja - ao lado do reinado - ditou as regras de como se deveria brincar o Carnaval, uma festa definida pela religião como da “carne e do pecado”. Foi a partir daí que, para curtir as festas, os brincantes passaram a ocultar as suas identidades, utilizando, para isso, as chamadas máscaras.

No Maranhão, mais especificamente em São Luís, apesar da participação portuguesa em vários momentos de sua história, a intervenção do país europeu neste costume de se pular carnaval quase que “de forma clandestina” somente se deu tempos mais tarde. Com a popularização do rádio, a partir da primeira metade do século XX, com o “boom” do chamado movimento do samba e sua popularidade, aumenta a vontade popular de curtir a festa, ainda que sob observação criteriosa da Igreja Católica.

A partir da década de 1920, com o nascimento das primeiras turmas de samba (Turma de Mangueira, Turma do Quinto e outras), pessoas buscavam brincar os “únicos” três dias de algazarra no ano no eixo urbano da cidade. Parte da população, com medo de ser ridicularizada ou criticada, começa a ganhar as ruas vestindo-se de forma fantasiada e com máscaras, para preservar a identidade.

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Foi aí que, segundo o pesquisador cultural, Euclides Moreira Neto, surge com mais força o personagem fofão. Com características únicas, o fofão torna-se um misto de terror e de elemento sátiro. “No carnaval maranhense, o fofão é um personagem brincalhão, vestido com uma espécie de macacão muito folgado, que o torna bufante, produzindo movimentos salientes, à medida que o usuário se movimenta. Normalmente, os movimentos são exagerados, conduzindo a uma brincadeira de criança e usados ainda para assustar a pessoa com quem se está interagindo”, afirmou.

Décadas mais tarde, o fofão ganha roupagem mais próxima da atual. Geralmente, os fofões usam guizos nas bordas dos braços e pernas, além de uma máscara que remete a uma pessoa deformada ou a monstros naturais. “Quase sempre o nariz é pontudo, lembrando um mentiroso, como o personagem Pinóquio, mas lembrando a figura fálica de um pênis”, disse o pesquisador.

A importante pesquisadora e uma das principais referências biográficas no segmento cultural maranhense, Zelinda Lima, em precioso e rico registro intitulado “Ajuntamento de Memórias”, de Euclides Moreira Neto, faz uma descrição precisa acerca da figura dos fofões, que passa a ganhar as ruas e avenidas da capital maranhense com mais força a partir da segunda metade do século XX. Segundo ela, nesta época, por se tratar de uma fantasia simples, sem elementos complexos no âmbito dos materiais para fabricação, o fofão se popularizou. “O fofão era uma roupa tradicional do nosso carnaval. Em São Luís, havia também blocos de fofão, que saíam pelas ruas, que era outro tipo de brincadeira”, afirmou.

De acordo com Zelinda Lima, a partir da popularização, o fofão passou a retirar o selo de assustador e começou a promover brincadeiras. “Começaram a surgir blocos de fofões, que colocavam as crianças para correr, não somente pelo terror, mas pelo fato de que os foliões jogavam tapioca neles, ou um pó qualquer, então eles corriam pra pegar as pessoas e se tornavam um bloco de palhaçadas. As máscaras eram horríveis e as crianças se assustavam ou choravam”, disse.

Zelinda Lima também coloca uma variação da figura do fofão, comum aqui na capital. “Muita gente também se fantasiava de fofão e saía individualmente pelas ruas espantando crianças e adultos. Havia uma variação de fofão. Havia uns que se fantasiavam de Cruz Diabo, que era mais relacionado à religião, pois o brincante se vestia de Satanás com tridente na mão”, afirmou a pesquisadora, que viveu boa parte dos seus 94 anos de vida observando e analisando esta e outras manifestações culturais.
Além do Cruz Diabo, outras variações dos fofões também surgiram, ao longo dos anos e em outras partes do país.

Tentativa de rememorar o auge do fofão: segura o meu blocão!
No ano passado, um grupo de amigos - incomodados com a ausência da figura dos fofões dos circuitos da folia, nos últimos anos, decidiram se juntar e rememorar as lembranças da infância em que, vestidos de fofão, se divertiam pela cidade.

A tentativa deu tão certo (em menos de 24 horas, 60 pessoas foram mobilizadas pelas redes sociais em plena segunda-feira de Carnaval em 2019), que os tais amigos decidiram fundar o “Blocão do Fofão”, grupo organizado que exige apenas a vestimenta e adereços tradicionais dos fofões.

Além da roupa de chita, a varinha e a boneca são itens obrigatórios. Quem pegar na boneca, aliás, tem que pagar uma prenda. Em média, pessoas acima dos 50 anos participam do grupo. Um deles é o artista performático Uimar Júnior, que reforça a ideia de retomada da figura dos fofões “com urgência”.

Para ele, os fofões representam o que é a festa, ou seja, o aspecto genuíno. “Ser fofão é ser livre para interagir com as pessoas, brincar nos circuitos livremente, sem preocupação de ser feliz. É preciso pensar no estímulo à volta de uma bela tradição que, aos poucos, foi se perdendo na cidade”, afirmou Uimar.

O membro do “Bloco do Fofão”, Celso Reis, destaca ainda o retorno imediato, com a fundação do grupo. “Em pouco tempo, reunimos seguidores nas redes sociais e simpatizantes do nosso trabalho. É árduo, algo difícil, que não tem relação com o poder público e nasce apenas da vontade de nós, que temos saudades dos tempos dos fofões”, afirmou.

Além do “Blocão do Fofão”, ainda há o Segura no Meu Fofão, que também costuma desfilar por ruas e avenidas da cidade.

[e-s001]Os “parentes” dos fofões: ala ursas, bate-bolas e papangus

Além dos fofões, outros personagens com características semelhantes surgiram, com suas peculiaridades, em outras partes do país. Por suas caracterizações físicas e, principalmente, papéis na festa, várias denominações surgiram, como alas ursas, bate-bolas e outras.

Das alas ursas aos bate-bolas
De acordo com pesquisadores, a ala ursa é uma tradição onde as crianças se vestem de urso e saem pelas ruas batendo latas e pedindo dinheiro sob o som: “Ala ursa quer dinheiro, quem não der é pirangueiro!”.
Segundo manda a tradição, as crianças brincam e confeccionam seus instrumentos, cantam e se manifestam. Já os bate-bolas são conhecidos, em especial, no carnaval carioca e fazem menção à figura do chamado “bicho-papão”, um misto de adoração e terror. Em alguns bairros, os bate-bolas (formados basicamente por um personagem com um apito na boca, uma bola de borracha e uma fantasia colorida) são chamados de “Clóvis”, que não faria referência ao nome próprio em si, mas à denominação de palhaço em inglês (“clown”).

Segundo pesquisadores, o surgimento dos bate-bolas estaria relacionado à colonização portuguesa e a outras festas, como a folia dos reis por exemplo.

Além dos bate-bolas e ala ursos, há ainda os papangus, que são oriundos do Carnaval de Bezerros, cidade do agreste de Pernambuco (situada a pouco mais de 100 quilômetros da capital, Recife) e representam uma tradição centenária. A manifestação, de acordo com o registro oficial, nasceu de uma brincadeira de familiares dos senhores de engenhos, que saiam mascarados e mal vestidos para visitar amigos nas festas de “entrudo” (denominação dada antigo Carnaval do século dezenove).Apesar das variações, artistas defendem que a figura do fofão é única e, por suas características, somente são encontradas na capital maranhense e em outras cidades do Estado.

[e-s001]Oficina tradicional de máscaras

Anualmente, a Universidade Federal do Maranhão (UFMA), por meio da Pró-Reitoria de Extensão e Cultura (Proec), realiza a oficina de máscaras de fofão, para rememorar a antiga tradição. Os alunos fazem desde a preparação da massa com papel machê, à colocação da forma e contorno da máscara à pintura.

A oficina é encabeçada pelas professoras Li-Chang Shuen Sousa e Marlene Barros. “A gente resgata uma cultura que era somente nossa, mas com a essência da fabricação da máscara original, sem aquela relação da máscara de borracha. O design é feito pelos próprios participantes e todos os anos estamos fazendo”, disse Marlene Barros a O Estado. Durante a oficina, realizada na Galeria Antônio Almeida do Palacete Gentil Braga, os participantes têm a oportunidade de aprender boas técnicas de arte. “Saía quando eu era criança e me dava saudade. A cultura popular vem sofrendo falta de incentivo, as crianças estão brincando de outra forma. Então é importante rememorar. O fofão é lúdico, mexe com o imaginário, com o brincar.

A criança aprende desde cedo a relação entre o belo e o grotesco”, disse o aluno Tairo Lisboa. A Prefeitura de São Luís também promoveu, no dia 13 deste mês, oficinas de máscaras em unidades mantidas pela Secretaria Municipal da Criança e Assistência Social (Semcas). As oficinas foram realizadas no Centro de Referência de Assistência Social (Cras) da Cidade Operária, do Bairro de Fátima em parceria com a Associação São Benedito do Bairro de Fátima e a Unidade de Acolhimento Casa de Acolhida Temporária. Os participantes são treinados para produzir o material para uso próprio ou comercialização.

[e-s001]Mulher também brinca fofão!

Há 40 anos, uma jovem cheia de planos para o futuro brincava por ruas e avenidas da cidade vestida de fofão e brincando no Carnaval. Por temor da sociedade, a então jovem Tânia Lamar seguia mascarada pelas ruas, somente sendo “reconhecida” pelos amigos mais próximos.

A então lembrança seguiu pelos anos seguintes e voltou com força, ao surgir o “Blocão do Fofão”. A agora dona-de-casa Tânia Lamar passou, após os 59 anos, a curtir novamente a folia como nos bons tempos de infância e adolescência.
A O Estado, Tânia falou sobre a época de infância, em que se vestia de fofão. “Era uma época maravilhosa, em que a gente tinha gosto de curtir esta festa na cidade. Atualmente, está difícil, com violência e outros fatores, está complicado brincar a festa”, frisou.

Ela lembrou ainda que outras jovens também curtiram, há alguns anos, a festa vestidas de fofão. “Havia outras amigas que também brincavam, mas como estavam mascaradas, não havia problema [risos]”, disse.

[e-s001]O fofão-mirim

E quem disse que criança atualmente não gosta de se vestir de fofão? O exemplo disso é o jovem Yago, de apenas 5 anos. Desde “cedo”, o garoto sabe o que é curtir fofão. “Eu gosto, meu pai me veste”, disse.

Yago disse ainda que costuma brincar com outros amigos de sua idade de fofão. “A gente brinca junto”, afirmou. O pai do jovem, Karlo Costa, também é fã incondicional da figura do fofão e espera o resgate da mesma neste carnaval.

“É importante resgatar antigas tradições, e esta do fofão recorda momentos importantes da infância e adolescência. Sem dúvida, um prazer voltar a viver estes instantes, em que a gente se divertia como fofão por aí afora”, afirmou.

SAIBA MAIS

A proibição das máscaras e “restrição” aos fofões há 11 anos: a portaria polêmica na capital

Em 2009, quando a tradição dos fofões começara a ganhar contornos de decadência, veio a chamada “pá de cal”. Uma medida tomada pela Secretaria de Segurança Cidadã, como forma à época de coibir a violência, proibiu o uso de máscaras no Carnaval de rua da cidade. Com isso, os tradicionais fofões sumiram das ruas.

Na ocasião, a medida fora justificada pelo fato de que as “máscaras” esconderiam o rosto das pessoas e, em consequência, impediria a identificação dos bandidos. A portaria foi válida somente para os três dias da folia e, de acordo com o documento, o uso de “máscaras, fantasias, adornos ou brincadeiras que não permitissem a identificação das pessoas ou atentassem contra a moral ou decoro da família” seria coibido pelos policiais.

A medida, na ocasião, dividiu opiniões. Alguns foliões disseram que a medida “fora correta” e daria mais tranquilidade para os brincantes. Outros representantes da festa mais tradicionais disseram que a decisão “era uma afronta às tradições da festa”.

No período, a pressão dos carnavalescos e fãs das tradições momescas prevaleceu e o poder público recuou nos anos seguintes. Ainda assim, por conta própria, a tradição fora perdendo força. Movimentos de resistência, como grupos ligados a universidades, por exemplo, tentam manter viva a marca do fofão.

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