Crítica

O imagem-corpo e a música-alma

Novo longa de Frederico Machado, que estreou recentemente no Festival de Brasília, é, segundo o crítico Marco Fialho, forte, perturbador e delirante

Marco Fialho

Atualizada em 11/10/2022 às 12h22
Cena de "As Órbitas da Água”, de Frederico Machado
Cena de "As Órbitas da Água”, de Frederico Machado (Ás órbitas da água)

Um filho acompanhado de uma mulher volta para a casa em região ribeirinha após o pedido do pai. Chegando lá se confronta com seu nebuloso passado e terá que decidir sobre o seu futuro. Esse é o fio de história que Frederico Machado nos apresenta em "Órbitas da água", dividida em três partes: órbitas, lodo e água. Tudo o mais são peças e fragmentos a serem conectados pelos espectadores no decorrer de pouco mais de uma hora de duração. O filme é o quinto longa de Frederico e o que fecha a trilogia dantesca ("Exercício do caos" e "O Signo das tetas"), inspirada na obra poética de seu pai, o poeta Nauro Machado.

“As Órbitas da Água” é dos filmes de Frederico Machado em que mais ele se expressa pelos corpos de seus atores e o aspecto sensorial é mais acentuado pelos planos e enquadramentos escolhidos. Visivelmente há uma preocupação permanente em despertar sensações nos espectadores. Os sons são trabalhados com minúcia rara de se ver hoje no cinema. A música, os lamentos e o som ambiente constroem camadas fundamentais para acentuar a angústia presente entre os personagens. Enquanto que a camada sonora nos empurra para dentro do filme, a camada imagética se mostra impenetrável e nos afasta. Se estabelece um embate interessante e sensorialmente perturbador. A atmosfera está sempre oscilando entre algo que esbarra no delirante, na memória melancólica e na dureza do presente a ser encarado. Os olhares dos personagens trazem um peso para cada cena, instituindo uma tensão permanente, como se alguma tragédia estivesse para acontecer a qualquer momento.

Eloquentemente, os corpos possuem um papel central em "Órbitas da água". Eles se roçam, esfregam, trepam, trabalham, sonham, morrem e se matam. Eles parecem disponíveis, sem amarras, mesmo que a realidade esteja lá para contradizer a simbólica cruz cristã, presente em várias cenas. Triângulos, trocas de casais, bissexualismo e transas lésbicas permeiam as relações lascívias entre os personagens. Aspectos formais também reafirmam as instabilidades sexuais. Frederico insiste em filmar várias cenas com presença do primeiro e do segundo plano, bastante expressivo para nos revelar que existe no filme sempre algo por trás do que vemos, mesmo que a imprecisão da imagem embaçada prevaleça. A câmera orbita, e faz em muitas das vezes, os personagens flutuarem na tela, o que muito revela sobre eles, em especial na primeira parte do filme, como os mesmos estivessem à deriva.

O uso de planos próximos e de closes, nunca permitem uma visão clara da cena, nos obliterando o todo. Assim o filme nos dá a sensação de ser sempre fugidio, como se estivéssemos perdido algo do enredo. A história se fragmenta em dois níveis: no plano narrativo, com informações sempre incompletas dos fatos; e no plano imagético, com contínuas imprecisões óticas que caminham para o abstrato. "Limite" (1931), de Mario Peixoto, obra-prima e máxima do nosso cinema, parece ser uma grande influência espiritual desse "Órbitas da água", que possui muitas imagens metafóricas a serem decifradas.

Com diálogos econômicos e fortes, entremeados pelas belas e potentes poesias de Nauro Machado, Frederico nos brinda com "Órbitas da água" com uma obra densa, com atuações precisas, orgânicas e bem dosadas de seu elenco principal, formado por Auro Juriciê, Rejane Arruda, Antonio Saboia, Flavia Bittencourt e Tácito Borralho. Há um conjunto harmonioso nas interpretações, todos os personagens são profundamente solitários, impingidos por uma impiedosa tristeza vinda de um passado opaco e violento. Tudo apontando para um convívio social doloroso para cada um dos personagens, eles trazem a dor nos olhos (alma) e no corpo. O trabalho do corpo e do olhar (alma) estão integrados de tal maneira, que conseguem sustentar a difícil dramaturgia proposta pelo diretor, marcada por uma narrativa descontínua, que traz mais dúvidas do que certezas ao espectador.

A divisão em três capítulos (órbitas, lodo e água) mais do que explicar racionalmente o enredo, funciona como organização espiritual de "Órbitas da água". Em Órbitas, há a volta do elemento (corpo) que trará a pertubação ao local; em Lodo, a reverberação do passado e a preparação do embate; e em Água, a fluidez do líquido no acerto de contas e no futuro indeterminado. Mais uma vez, Frederico Machado investe em uma parábola e se volta para o universo opressor da família patriarcal, típica da nossa região nordestina, se utilizando de uma estrutura narrativa fragmentada para expressar os destroços de uma ideia falida de família católica. Como bem diz o personagem de Antonio Saboia: "família (leia-se a cristã) é o abandono do indivíduo por uma ideia maior". Será mesmo? A interrogação paira no ar para por todas as certezas em suspenso. É bom lembrar, que em "Órbitas da água", o corpo é o instrumento do inconformismo, do desejo e da tragédia, enquanto a música, a expressão da transformação da alma e da inevitabilidade da morte.

* Marco Fialho é carioca e crítico de cinema

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