Artigo

A espingarda do meu pai

Atualizada em 11/10/2022 às 12h26

Não entendo nada de arma de fogo, já que fui acostumado com a peixeira, arma branca que servia para tratar o peixe e cortar outros alimentos, como também era muito utilizada nas brigas de festa e de rua. Ela teve seu período áureo, assim como a cachaça pitu, o relógio seiko 5, a calça de linho belga, o rifle papo amarelo e para não alongar mais, acrescento também a espingarda carregada pela boca. Tempos que se foram sepultando hábitos e modas. A posse legal de arma ainda está em discussão, mas foi transformada em lei por decisão presidencial, apoiada pela maioria da população e tendo como foco principal o alto índice de criminalidade que tomou conta do País. Como não penso em possuir sequer um canivete, isso não me incomoda, desde que inexistam exageros e tudo seja resolvido de acordo com a lei. O Brasil encontra-se com os nervos à flor da pele por causa do excesso de corrupção, até porque qualquer corrupção é um excesso e o povo clama por medidas avassaladoras, sem se importar com o tempo de vida do novo governo. A pressa é justificável, tendo em vista a racionalização do tempo, que ficou delimitado pelos meios de comunicação de massa, o que causa uma interação incrivelmente real e rápida. O mundo realmente mudou ao ponto de não se querer mais saber de coisas tipo filme de bang bang, carnaval de clube, briga de faca, roubo de galinha caipira, desfile de miss, aparelhos de tocar fita e outros. Ora, ninguém pode mais brincar com criancinhas estranhas sob pena de ser confundido com pedófilo ou sequestrador, até casamento que antes se roubava a moça, pra casar, saiu de moda, ficou perigoso e corre o risco de se transformar num sequestro relâmpago. A convivência humana a cada dia vai ficando mais difícil, acabaram-se as conversas de vizinhos na porta da rua, ou seja, desapareceram os diálogos, a solidariedade e companheirismo. As igrejas, que pregam a religião, parecem ainda ser uma válvula de escape para a fuga da solidão. Televisão, internet, celular foram esses três monstros que tiraram de nós o direito ao colóquio, a inocência e o habito de discutir coisas tão rotineiras como futebol, política e religião. Não temos mais tempo pra isso. A poesia que antes nos dava o prazer de sonhar, foi dilacerada por esses monstros exterminadores do passado. Mas nunca vou esquecer da triste espingarda do meu pai, que vivia isolada num certo local da casa e como instrumento de caça anualmente disparava um tiro numa robusta juriti que assada e saboreada pelas crianças, causava uma grande satisfação. Até isso está esquisito, caçar uma juriti dá prisão. Por reconhecimento e sem desprezar as coisas boas que os monstros modernos trouxeram, rendo-me aos poetas pela pureza dos seus versos e também faço uma homenagem à velha espingarda do meu pai, que dá saudades em relação ao modernismo e utilização de armas mortíferas hoje existentes, causadoras e estimuladoras da criminalidade. Por fim quero também homenagear a natureza através da juriti que Castro Alves destaca em poema ao dizer pro caminheiro não perturbar o escravo ali sepultado, que o deixasse em paz a dormir sozinho e que não precisava dele porque a “juriti, do taquaral no ramo povoa soluçando a solidão”.

Valdemir Verde

Vereador, ex-prefeito de Humberto de Campos, aposentado do Banco do Brasil

E-mail: valdemirverde@yahoo.com.br

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