Homenagem

Nauro Machado aniversaria hoje

Dono de uma obra intensa, o poeta se eternizou na memória coletiva por meio de sua arte

Atualizada em 11/10/2022 às 12h29
Nauro Machado é dono de uma vasta obra
Nauro Machado é dono de uma vasta obra (Nauro Machado)

SÃO LUÍS - Nauro Machado completaria hoje 83 anos de idade. Este ano, “Campo sem base” (1958), primeiro livro do poeta, está completando 60 anos de seu lançamento feito antes dele completar 23 anos de idade e após ser premiado no Concurso Cidade de São Luís. Sua esposa Arlete informa que brevemente será lançado um livro, que ela acaba de organizar, reunindo artigos recebidos durante estes 60 anos sobre a obra e personalidade do esposo e grande poeta. A seguir, transcrevemos um artigo sobre o último livro de poesia de Nauro, “Canções de Roda nos Pés da Noite”, publicado em 2016.

ROMANCES DE ONTEM E SEMPRE

Fernando Braga

Ensaísta e Poeta

Recebi, pelos Correios, Canção de roda nos pés da noite, que seria na ordem cronológica de publicações, o 44º livro de Nauro Machado, e Colheita, de Arlete Nogueira da Cruz. Nauro, nos últimos de seus dias, pedira a Arlete, sua mulher, que o fizesse publicar logo, dentre seus trabalhos póstumos, vez que este livro é dedicado às netas Luísa e Júlia, filhas do cineasta Frederico Machado, filho único e herdeiro da eugenia brilhante do casal. O outro exemplar, Colheita, é uma antologia poética de Arlete, a enfeixar poemas de Canção das horas úmidas (1973), Litania da velha (1996), O quintal (2013) e poemas inéditos.

Essas duas lembranças vieram acompanhadas de um terno e generoso bilhete de Arlete, a falar da dimensão do tempo que a assoberba de afazeres, bem como da nossa tríade saudosa, querida e fraterna. Juro que meus velhos e míopes olhos lacrimejaram. Realmente, o tempo é implacável!

N’O Quintal dos Prazeres, que mais se parece com um título de alguma quinta portuguesa, e o é por semelhança, porque lá foi a morada do poeta, onde se pretende instalar uma casa de cultura, a ser chamada Casa de Nauro Machado, ele enobrece mais ainda aquele seu recanto, neste canto: A poesia com que falo / pela boca em mim maldita, / querendo a que canta o galo / que pela manhã mais grita, / a poesia sem a sola / dos sapatos do poeta, / é que a leva em sua sacola / as cadernetas da neta, / a cantar pela manhã, / como quem abre a janela. (...)

E para o Hotel Nazareth, sobradinho verde que abrigava nos baixios a Casa Ribamar, especialista em instrumentos musicais, e defronte do Atenas Bar, nosso velho tugúrio alcoólico e poético, Nauro canta em contraponto: “Se tocas corda, / cercando lívidos / pescoços-cordas, / meus vocábulos / são de enforcados, / tombando do alto / de outros sapatos.” (1)

No Sobrado do Carmo, solar do clã dos Machado, velho e intransponível Quartel das Oposições Coligadas do Maranhão e redação de O Combate (jornal da família) onde o poeta viveu parte de sua vida, seu choro é ecoado pelas centenárias sacadas de ferro: “Do outro lado só há o nada: /ninguém te segura os dedos, / nem mesmo tua ama, a fada / que ainda te guarda os segredos.”

E clama em A idade de pedra, num laivo quase uterino: “Nenhuma mãe / me teve velho; / vivendo em mim, / sou um homem órfão / desse menino / que não morreu.” E, de Vidro e treva, Nauro projeta-se: “Era tu espelho, filho, / o resto que era meu. / Era o espelho de um pai, / a face que era a tua. / Nessa eterna presença / viverá nosso tempo.”

“Aos pés desse tempo em projeção do qual cada anoitecer precipita tanto nova aurora quanto o fim a todos comum, encontram-se os polos dos poemas aqui reunidos: o socorro do verbo à conclusão da matéria humana”, disse nas abas do livro, com muita propriedade, Luiz Eduardo Meira de Vasconcellos.

Quem viu o rosto de Nauro, não morre nunca! Nauro está vivo!

Sobre Colheita de Arlete Nogueira da Cruz, endosso Assis Brasil quando diz que ela “atinge o ser da literatura poética, e, por sobre a norma da língua, atinge a arte da palavra, com seus poemas inefáveis, fiel à tradição da imagem que tem marcado a poesia, a boa poesia de todos os tempos.” Arlete canta a Cidade de São Luís: “Ó cidade de São Luís, / estanco nestes degraus / subindo escadas que fiz, / suando os mais altos graus. // Acolhe esta andarilha / subindo no desamor / das águas que me querem ilha, / de outras que me ensinam dor.”

Ao alongar a vista desarmada para Itapuitapera [lê-se de Alcântara], Arlete acende uma estrela na tosca luz da aristocrata cidade escondida na linha do horizonte, a cantar: “Onde o verdugo passou / e a solidão ainda mora, / Alcântara suportou / sua noite e a sua aurora.” E finaliza: “Na quitanda que não vejo / para a fome deste dia / da criança que almejo / nos paços da freguesia.”

Como filha querida, volta à prosa, numa bela crônica, e canta sobre o pai em Raimundo, simplesmente Raimundo, de onde extraí este excerto: “Era um homem recatado, contrito, humilde, que rezava o Pai-nosso todas as noites com as mãos cruzadas entre as pernas e, depois do sinal da cruz, deitava e dormia sem remorsos porque tinha o dever cumprido e a consciência limpa.”

Arlete retorna ao verso e diz à sua mãe:

“Neste mês de novembro/ encontro a minha lua generosa. / Tu me tens, lua-luar, / desde quando me protegias/ nessa tua forma ovular crescente,/ mesmo depois, quando minguavas, / também hoje em plenitude, / nesta noite de novembro, / lua-minha que vai e volta,/ lua cheia, tu me tens.”

E para Nauro, o velho marido e querido poeta, Arlete, engolindo o soluço e esboçando um sorriso se esforça para dizer em Relíquia: “Nuvens avançam sobre líquidas travessias /enquanto sólidas lágrimas te guardam / sob pálpebras congeladas de assombro.” E, em Regozijo: “Ó consumado gesto de uma alma / que aflorou desperto de seus dedos. / Para sempre, sobre a morte, / ele triunfa em tais segredos / para sempre ficará em júbilo de versos.”

Que trajetória ascendente e bem construída foi o caminho literário de Arlete Nogueira da Cruz, que ainda muito jovem, sob as vistas de uma crítica ferina encastelada nas muralhas centenárias de São Luís, fez explodir a novela A parede, com uma apresentação emocionada de Josué Montello. Depois a vida em si, o casamento, uma união do útil com o agradável, a paciência e a fragilidade de Arlete ante o espírito ambulatório e a genialidade de Nauro Machado, surgindo os dois de uma mesma lâmpada mágica.

Depois Frederico, a estudar cinema, a dar, assim, um conteúdo acadêmico ao que o pai de há muito já aprendera na forma poética das telas do Roxy e do Éden. Por fim, o nascimento de Luisa e Júlia, as netas, a Litania da Velha, que é um livro fantástico. E mais versos, contos, conferências. Entendi, Arlete, porque faltou tempo para te alongares no bilhetinho que m’o fizeste.

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(1) Neste Hotel enforcou-se um hóspede, suicídio que, na ocasião, abalou profundamente o poeta Nauro Machado.

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