Música

Marina Lima e sua “Novas Famílias”

Em novo show, artista apresenta todo seu engajamento, tanto no repertório inédito quanto naquelas composições de décadas atrás, muitas vezes entendidas como canções de amor

Luís Rodolfo Cabral / Especial para o Alternativo

Atualizada em 11/10/2022 às 12h31
Cantora Marina Lima estreou novo show no fim de semana passado
Cantora Marina Lima estreou novo show no fim de semana passado (Marina cantora)

“Não existe caminho, viaduto, túnel, viaduto, nenhum caminho direto que leve à plena realização de um país. Mas a gente tem de tentar, é preciso tentar”. Quando Marina Lima fez este apelo, registrado em 1986 na gravação do disco “Todas Ao Vivo”, era pouco provável imaginar que, passados mais de 30 anos, ele se manteria pertinente, especialmente se lembrarmos que o programa de governo atual é intitulado “Uma ponte para o futuro”. Na estreia do show “Novas Famílias” neste fim de semana, os versos alterados do refrão de “Acontecimentos” fizeram ecoar o apelo de outrora. “O que é que há com nós dois, Brasil?”: o vocativo, inexistente na versão original de estúdio, marca a interlocução direta – é sobre e com o Brasil que Marina Lima quer dialogar.

Com a riqueza musical do nosso país, a pauta dessa interlocução necessariamente tem de passar pelas sonoridades contemporâneas, aquelas mesmas que estão registradas em “Novas Famílias”, o disco de apoio do show. Impossível não notar o poder da bateria eletrônica em “Árvores Alheias”, fruto do trabalho conjunto com Arthur Kunz, que, ao lado de Leo Chermort, formam o duo paraense Strobo, com o qual Marina firmou parceria anos atrás.

Do Norte, veio a influência para “É Sexy, É Gostoso”, um tecnobrega que fez o público querer se levantar para dançar. Rendida ao apelo popular – “Quero ter uma sofrência minha”, confessou - emenda uma releitura de “Mesmo que seja eu”, e os mais entusiasmados subiram ao palco para se embalar na versão que tornou possível a aproximação de Erasmo Carlos e Pablo do Arrocha. O revestimento eletrônico é a constante do show, e canções como “Eu não sei dançar”, “O chamado” e “Pessoa”, ainda que reatualizadas musicalmente, explicitam a atemporalidade da obra de Marina.

Aliás, “Muito”, de Caetano Veloso, soa como inédita, mesmo tendo sido gravada em 1979 para “Simples Como Fogo”, disco de estreia dela. A incursão da música eletrônica, hoje mais próxima do mainstream, é resultado de experimentos iniciados em Pierrot do Brasil, de 1998, e consolidados em Setembro, de 2003.

É a ousadia de experimentar e o talento musical que coloca Marina Lima em outro patamar: sempre atenta, ela é a bússola que aponta o que importa ouvir. Daí porque para o disco houve as parcerias com Marcelo Jeneci, Silva e Letrux, ou as referências aos coletivos de São Paulo, como Mamba Negra. Na música de Marina, a diferença entra em confluência. No palco, também.

Quando o funk “Só os coxinhas” começa, é difícil não se lembrar das acusações de ideologia partidária à época do lançamento do single em fevereiro deste ano. Em entrevistas recentes, a cantora explica que coxinha não está relacionado a um partido, mas a uma postura intransigente e antiquada. No show, ao som da canção, a imagem Bolsonaro nas projeções – acompanhada por sonoras vaias do público nas duas noites de show – dispensa maiores explicações. A postura política de Marina – a compositora e a artista – nunca esteve tão explícita como agora.

Os versos metafóricos, dos quais se poderia depreender um recorte de uma época, agora soam mais como uma convocação. Na capa do disco, um lenço lhe cobre parte do rosto. Nos palcos, durante “Mãe Gentil”, usa uma máscara negra, de black block, e pede “pelo fim da fachada/ de nossa terra adorada”, enquanto é projetada a fotografia da vereadora e militante dos direitos humanos Marielle Franco, morta a tiros no Rio de Janeiro há pouco mais de um mês.

Composto por 22 músicas, “Novas Famílias”, o show, é fruto de uma criteriosa seleção no vasto catálogo de canções, boa parte das quais compostas com o irmão, o agora imortal Antônio Cícero.

Como nunca antes, o engajamento é latente, tanto no repertório inédito quanto naquelas composições de décadas atrás, muitas vezes entendidas como canções de amor: o cenário atual faz surgir novas possibilidades de interpretação, faz surgir a emergência do diálogo. E o diálogo de Marina Lima com o Brasil parece claro: a ponte que se nos impôs está em chamas; das cinzas, a gente vai ter de fazer um país.

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