Direito

Transexuais e travestis vão à Justiça para alterar nome e sexo

Presidente da Associação Maranhense de Travestis e Transexuais, Andressa Sheron Dutra pediu a alteração do nome e gênero para o feminino e afirmou que quase todos os associados desejam fazer a mudança

Atualizada em 11/10/2022 às 12h35
Marcelo Oka, juiz auxiliar da 3ª Vara Cível de SL
Marcelo Oka, juiz auxiliar da 3ª Vara Cível de SL

Para fazer a alteração do prenome e do gênero no registro de nascimento, os travestis e os transexuais submetidos ou não à cirurgia de mudança de sexo precisam recorrer à Justiça. No Judiciário maranhense, tramitam vários processos dessa natureza, e já foram proferidas, inclusive, decisões determinando aos cartórios a alteração no registro civil para uso do nome social por pessoas que ingressaram com o pedido. Em São Luís, são competentes para análise desses casos 2ª, 3ª e 8ª Varas Cíveis, que funcionam no Fórum Desembargador Sarney Costa (Calhau).

R.M.M. conseguiu na Justiça a alteração do prenome no registro (assentamento) de nascimento e a mudança do sexo masculino para o feminino. A parte autora alegou ter nascido com corpo fisiológico masculino, mas cresceu e desenvolveu-se como mulher. No pedido, junto à 3ª Vara Cível de São Luís, ressaltou que todos os documentos pessoais (RG, CPF, Título Eleitoral) foram expedidos com base no registro de nascimento, no qual constava a designação sexual masculina, o que lhe causava grandes transtornos, já que não condiziam com sua aparência física.

O juiz que proferiu a sentença, em agosto de 2016, Clésio Coelho Cunha, integrante da Comissão Sentenciante Itinerante, determinou ao cartório de registro civil a alteração no registro de nascimento, para a adoção do nome social (nome pelo qual os transexuais e travestis são chamados cotidianamente, em contraste com o oficialmente registrado, que não reflete sua identidade de gênero). Na decisão, o magistrado afirmou que as provas constantes nos autos e aquelas colhidas em audiência foram suficientes para o julgamento da procedência do pedido.

Para o juiz auxiliar Marcelo Oka, atuando na 3ª Vara Cível da capital, o tema é bastante polêmico e não há no Brasil lei específica que discipline o assunto, ao contrário de países como Argentina e Uruguai, que facilitam a alteração de nome e de gênero no registro civil de transexuais. “A jurisprudência já está reconhecendo esse fato e a nossa legislação tende a disciplinar essa situação”, acrescentou, citando casos de tribunais em que esse direito foi garantido, a exemplo do entendimento firmado pela Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) ao acolher um pedido de modificação de prenome e de gênero de transexual que apresentou avaliação psicológica pericial para demonstrar identificação social como mulher.

Defensora Lindevânia Martins propôs ação
Defensora Lindevânia Martins propôs ação

No Maranhão, em processo sob a relatoria do desembargador Antonio Guerreiro Júnior, a 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça, em novembro de 2016, reformou decisão da Justiça de 1º grau e julgou procedente pedido de uma transexual, determinando que o cartório procedesse a alteração do seu prenome e do gênero de masculino para feminino, independentemente da realização de cirurgia de redesignação sexual. A requerente recorreu da sentença de primeira instância, que concedeu parcialmente o pedido para alterar apenas o prenome, não tendo deferido a alteração do gênero em razão de não ter havido cirurgia de transgenitalização.

Já em abril de 2014, o juiz Gustavo Henrique Silva Medeiros, na época auxiliar da 3ª Vara Cível de São Luís, deferiu o pedido de S.S.S, determinando a retificação na certidão de nascimento passando o nome do requerente a ser M.T.S.S., além da mudança de sexo do masculino para o feminino.
Atualmente, tramitam em todo o Maranhão 5.484 processos referentes à restauração de registro de nascimento e casamento, registro de óbito tardio e também de retificação e alteração de nome e de sexo. Nas três Varas Cíveis de São Luís, responsáveis pelo registro civil, são 862 pedidos.

A possibilidade de se alterar o nome da pessoa de um sexo para outro pode contribuir para retirá-la de uma situação de vulnerabilidade”Marcelo Oka Juiz auxiliar na 3ª Vara Cível da capital.

Dignidade
Marcelo Oka explicou que a Lei n° 6.015/73 (Lei dos Registros Públicos) disciplina as normas gerais para o registro de nascimento, casamento e óbito, trata dos casos de retificações, restaurações e suprimentos no registro civil, mas não prevê o caso dos transexuais e travestis. Ele explica que o nome da pessoa é imutável, de modo que essa alteração somente pode ser deferida em situações excepcionais, especialmente porque a modificação do nome e do gênero acarretará repercussão em toda a vida pregressa e futura dessa pessoa, devendo o magistrado analisar sempre o caso concreto, “visando não apenas à satisfação de interesse pessoal do autor da ação, mas preservando a segurança pública e buscando a efetivação do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana”.

O magistrado cita dados da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, mostrando que houve um aumento de 166% do número de denúncia de homofobia entre 2011 e 2014. “A possibilidade de se alterar o nome da pessoa de um sexo para outro pode contribuir para retirá-la de uma situação de vulnerabilidade e para sua inserção no meio social”, ressaltou.
A presidente da Associação Maranhense de Travestis e Transexuais, Andressa Sheron Dutra, que também pediu a alteração do seu nome e gênero para o feminino, disse que quase todos os associados desejam fazer essa mudança também. A entidade tem 100 membros, a maioria do sexo feminino.

Andressa Sheron pediu a alteração do nome e gênero
Andressa Sheron pediu a alteração do nome e gênero

“Nem me lembro se vivi alguma fase de menino”

O travesti K.S.D, 31 anos, procurou o Núcleo de Defesa da Mulher e da População LGBT, da Defensoria Pública do Estado do Maranhão (DPE-MA), em São Luís, para que a instituição protocolasse seu pedido judicial de mudança de prenome e de gênero do masculino para o feminino. Conta que desde a infância se reconhece pela identidade de gênero feminino e que aos sete anos de idade passou a utilizar o nome de menina e a gostar de vestimentas femininas e, aos 12, assumiu socialmente a sua identidade de mulher e a usar hormônios.

“Nem me lembro se vivi alguma fase de menino”, afirma. Disse também que na infância e adolescência sofreu bullying na escola, que sempre foi alvo de preconceito e que ainda enfrenta uma certa resistência por parte da família.

Nos relatórios psicológico e social, K.S.D. registrou que já foi vítima de várias situações de violência e que chegou a pensar diversas vezes em suicídio, “como um desejo momentâneo de sumir para que, assim, acabasse todo o seu sofrimento”. A requerente pede à justiça a mudança de nome para A.S.S.D e de gênero para feminino, sem que lhe seja exigida uma cirurgia de transgenitalização, como garantem os enunciados no 42 e 43, aprovados na I Jornada de Direito da Saúde do Conselho Nacional de Justiça (2014).

História semelhante vive o transexual E.S.B., 44 anos, que também buscou o apoio da Defensoria para mudar seu nome para N.S.B. e o gênero para feminino. Afirma ser conhecida no meio social e familiar como mulher e se sente constrangida quando tratada por seu nome registral e quando a chamam por “senhor” em locais públicos. Conta, ainda, que desde os sete anos de idade começou a se perceber como menina, brincava com bonecas, se vestia como menina quando estava sozinha em casa e passou a deixar o cabelo crescer e usar vestes consideradas femininas só aos 19 anos. Depois que foi morar sozinha, teve conhecimento sobre transição hormonal e começou a ingestão de hormônios sem acompanhamento médico. Disse ser resolvida com seu corpo, não tendo interesse em fazer a cirurgia de redesignação sexual. Garante que só não sofreu mais porque seu pai lhe ofereceu apoio e solidariedade.

A defensora pública Lindevânia Martins, que propôs a ação judicial, disse que a requerente deseja apenas formalizar uma situação que já vivencia na prática, pois possui aparência de mulher como se vê nas fotos anexadas ao pedido e é conhecida pelo seu nome feminino como mostram os vários documentos apresentados.

Segundo a defensora, a permanência de um nome masculino nos documentos pessoais da parte autora faz com que a mesma sofra diversas discriminações e dificuldades nos locais públicos que frequenta, como hospitais, consultórios médicos, lojas e bancos, vendo constantemente exposta a sua vida privada, em razão do prenome masculino, em absoluta desconformidade com sua aparência feminina.

Lindevânia Martins explica que o procedimento prévio da DPE é encaminhar os requerentes para realização de estudo social e estudo psicológico que serão juntados à petição para fundamentar o pedido na Justiça. Explica que há muitos casos que chegam à Defensoria e que do ano passado até agora somente ela já propôs 11 ações judiciais junto às Varas Cíveis de São Luís e está preparando outras 10 petições com o mesmo objetivo. No Núcleo, atuam duas defensoras.

Direitos

A defensora pública destaca que no pedido de alteração do prenome e gênero de transexuais e travestis que buscam a DPE para ingressar com ação judicial, a fundamentação fática que utiliza é a questão do preconceito. Segundo ela, essas pessoas sofrem agressões psicológicas e morais, injúrias e xingamentos. “O reconhecimento dessa identidade trans pela mudança do nome e do gênero traz uma pacificação para esses indivíduos que passam também a ser respeitados pela comunidade e a ter uma vida social sem que isso seja uma fonte de dor e de discriminação”, afirma.

Já a fundamentação jurídica, segundo Lindevânia Martins, é constitucional. “Temos nos amparado na Constituição Federal que estabelece no seu artigo 1º o respeito à dignidade da pessoa humana e, conseguindo a mudança de nome e de gênero, é estar respeitando a nossa Constituição”, garante.

Ela ressalta que também recorre aos tratados internacionais que o Brasil ratificou comprometendo-se a respeitar os direitos humanos, os direitos das pessoas LGBT. Cita, ainda, o Código Civil e a Lei de Registros Públicos, além de outras normas a exemplo, no âmbito estadual, da resolução e parecer do Conselho Estadual de Educação que aprovaram o uso do nome social dos travestis e transexuais, acompanhando o nome civil, nos registros internos dos estabelecimentos integrantes do Sistema Estadual de Ensino do Maranhão.

Exigências

As pessoas que desejam entrar com a ação judicial têm atendimento presencial com um defensor público do Núcleo de Defesa da Mulher e da População LGBT. Além de passar por entrevista com psicólogo e assistente social, o interessado deve assinar termo de declaração de que não possui recursos financeiros para pagamento de advogado, requerendo por isso o acompanhamento da Defensoria Pública e o benefício da justiça gratuita. Também precisa apresentar documentos exigidos para ingressar com a ação judicial, entre os quais a certidão de nascimento, que é obrigatória, uma vez que a mudança do prenome e do gênero é feita pelo cartório no registro civil da pessoa.

Ao pedido também são anexadas fotos atuais e antigas do requerente, que mostrem a mudança na aparência física; fotografias e postagens em redes sociais (facebook, instagram, twitter); qualquer documento que prove a utilização do nome social (certificados, diplomas, cartas, e-mails, contas, convites); dados pessoais de três testemunhas (pessoas da família e do trabalho, vizinho, escola) que conheça há algum tempo e que possam contar para o juiz um pouco da história de vida do requerente.

Lindevânia Martins ressalta que o atendimento na DPE e o acompanhamento da tramitação das ações judicais são gratuitos e orienta os interessados a comparecerem ao atendimento agendado mesmo que faltem alguns documentos. A Defensoria fica na Rua da Estrela, no 421, Praia Grande, no Centro Histórico de São Luís.

Saiba Mais

O que diz a lei

A Lei de Registros Públicos (nº 6.015/73) possibilita alteração no nome do individuo, mas o interesse público limita às seguintes hipóteses: nome vexatório, erro gráfico e equívocos registrários, homonímia, pessoas que estão no programa de proteção a vítima e testemunhas e também a substituição por nome em que os portadores são publicamente conhecidos.
Para isso, o interessado deve requerer judicialmente, mostrando as razões das alterações ou retificação do nome e, após todo o procedimento fiscalizado inclusive pelo Ministério Público, juiz decidirá. O nome também pode ser mudado em caso de adoção de um menor (Lei 12.010/2009).

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