Dom Bosco

Há 200 anos, nascia o santo que sonhou com Brasília

No bicentenário de Dom Bosco, O Estado do Maranhão publica, pela primeira vez no Brasil, o texto integral do sonho-visão sobre a capital brasileira.

Sebastião Moreira Duarte/ Especial para o Alternativo

Atualizada em 11/10/2022 às 12h55
Hoje completa 200 anos do nascimento de Dom Bosco
Hoje completa 200 anos do nascimento de Dom Bosco (Dom Bosco)

Quem foi Dom Bosco

Dom Bosco nasceu há 200 anos, no dia 16 de agosto de 1815, nas vizinhanças do lugarejo chamado Castelnuovo d’Asti, cerca de 20 km de Turim, no norte da Itália.

João Bosco, Dom Bosco, São João Bosco: menino pobre, filho de lavradores analfabetos, órfão de pai antes de completar dois anos de idade, fez-se padre e é hoje santo da Igreja Católica. (O dom que antecede o seu nome não significa que ele foi bispo: é o modo como os italianos chamam os sacerdotes, adotado, mundo afora, no caso de Dom Bosco e outros poucos eclesiásticos).

A biografia de Dom Bosco tem lances vivíssimos de aventura e realizações surpreendentes. Ainda criança, entretinha seus coleguinhas como mágico e saltimbanco. Como padre, recusou-se a aceitar uma paróquia. “Os meus paroquianos são os meninos de rua” – ele assumiu. Isso lhe custou sacrifícios pessoais, incompreensão, e mesmo desaprovação, de autoridades civis e religiosas. Toda a sua vida foi dedicada a esse ideal, a ponto de a Igreja considerá-lo “o pai e mestre dos adolescentes”.

Pela juventude pobre, o Padre de Turim desenvolveu projetos inovadores que o colocam entre os grandes nomes do empreendedorismo, em qualquer tempo. Ele começou renovando a prática dos Oratórios Festivos, que vinha de S. Filipe Néri, três séculos antes. Líder nato, atraía os jovens abandonados e os entretinha com o esporte e o teatro, até obrigar-se a lhes oferecer casa e comida, e viver junto com eles. Abriu, por isso mesmo, escolas onde ensinar uma profissão útil àqueles rapazes. Tornou-se, a partir daí, pioneiro da educação profissional e notável homem de imprensa. (Suas obras compreendem mais de 20 volumes). A alegria e o ambiente familiar foram a marca de sua pedagogia. E foi do meio daqueles a quem ensinara um caminho de inclusão social que escolheu os seus auxiliares e continuadores de sua obra. Reunindo um grupo deles, fundou a Sociedade de São Francisco de Sales, os salesianos, que é hoje a terceira maior congregação religiosa da Igreja de Roma.

Morreu em 1888 e foi canonizado em 1934.

Um homem de ação e um vidente

Dom Bosco foi um homem de densa espiritualidade, mas que fazia do próprio trabalho uma forma de oração. Pode-se dizer que ele não teve tempo para “visões” místicas. Tudo o que de “revelação divina” lhe tenha acontecido deu-se em sonhos – mais de 200 – que o acompanharam e lhe dirigiram a vida, desde os nove anos de idade. Foram premonições e “profecias” que depois se realizaram com surpreendente realismo.

O “sonho de Brasília”: sonho da América do Sul, sonho do Mercosul?

Dom Bosco teve o famoso “sonho de Brasília” em uma circunstância muito especial de sua vida e de sua obra. Era a manhã do dia 4 de setembro de 1883. Realizava-se em Turim a 3ª Assembleia Geral da Congregação Salesiana, da qual participavam os primeiros de seus seguidores mandados como missionários para a América do Sul. (Naquele mesmo ano, a 14 de julho, os salesianos instalavam-se no Brasil, em Niterói, RJ).

É preciso observar que vidências, profecias, visões ou sonhos revestem linguagem própria, que nem sempre se expressa com a clareza da consciência em plena atividade. Apesar disso, Dom Bosco descreve com impressionante nitidez os fatos, lugares e situações a que se refere.

Não se há de esquecer, também, a impregnação eminentemente religiosa deste relato, que, conforme se verá, é muito mais que uma antevisão sobre o surgimento da capital brasileira, mas se configura como um panorama vastíssimo, em grandiosidade de cinemascope, do futuro da América do Sul.

Uma antecipação sobre os destinos do Mercosul?

O sonho de Dom Bosco foi recolhido pelo primeiro autor de suas Memórias biográficas (19 volumes), o padre João Batista Lemoyne. O manuscrito foi submetido ao santo, e ele mesmo lhe fez os acréscimos que, a seguir, aparecem em itálico. Os textos entre colchetes [ ] são do biógrafo, “conforme ulteriores explicações que lhe foram dadas pelo próprio Dom Bosco”. O original em italiano está no volume XVI, p. 385-394 da obra referida.

Eis a íntegra do documento:

Era a noite que precedia a festa de Santa Rosa de Lima [30 de agosto], e eu tive um sonho. Parecia-me estar dormindo e ao mesmo tempo que corria muito, tanto que me sentia cansado de correr, falar, escrever e me afadigar no desempenho das minhas ocupações ordinárias. Enquanto pensava se se tratava de um sonho ou de uma realidade, afigurou-se-me entrar em um salão onde diversas pessoas conversavam sobre assuntos variados.

Uma longa conversa se desenvolveu a respeito da multidão de selvagens que, na Austrália, na Índia, na China, na África e, mais particularmente, na América, em número incalculável, ainda estão sepultados na sombra da morte.

– A Europa – disse com seriedade um dos conversadores, a Europa cristã, a grande mestra de civilização e catolicismo, parece ter-se tornado apática em relação às missões estrangeiras. Poucos são aqueles que são encorajados o suficiente para enfrentar longas viagens a países desconhecidos, a fim de salvar as almas de milhões de homens que também foram redimidas pelo Filho de Deus, Cristo Jesus.

Outro disse:

– Só na América, que quantidade de idólatras vive infeliz fora da Igreja e distante do conhecimento do Evangelho! Os homens pensam (e os geógrafos se enganam) que as Cordilheiras da América são como uma muralha que nos separa daquela grande parte do mundo. Mas não é isso. Aquelas enormes cadeias de montanhas têm desfiladeiros de mais de mil quilômetros de extensão. Nelas há selvas jamais visitadas, há plantas, e ainda pedras que por lá são escassas. Carvão fóssil, petróleo,[1] chumbo, cobre, ferro, prata e ouro estão escondidos naquelas montanhas, em lugares onde foram colocados pela mão onipotente do Criador em benefício dos homens. Oh Cordilheiras, Cordilheiras, quanta riqueza em vossa zona oriental!

Naquele momento, senti-me tomado por um vivo desejo de pedir explicações sobre mais coisas e indagar quem eram aquelas pessoas ali reunidas, e em que lugar eu me encontrava. Mas eu disse comigo mesmo:

– Antes de falar, preciso observar quem é essa gente.

E voltei curiosamente o olhar ao redor. Todas aquelas personagens eram desconhecidas para mim. Elas, no entanto, como se me tivessem visto só naquele instante, me convidaram a adiantar-me e me acolheram com bondade.

Perguntei então:

– Digam-me, por favor. Estamos em Turim, em Londres, em Madri, em Paris? Onde estamos? E vocês quem são? Com quem tenho o prazer de falar?

Mas todos respondiam vagamente, sempre discorrendo sobre as missões.

Naquele ínterim, aproximou-se de mim um jovem de seus dezesseis anos, amável por soberana beleza e todo radiante de viva luz, mais clara que a luz do sol. Sua vestimenta era tecida de celestial riqueza e sua cabeça estava cingida com um barrete em forma de coroa, recamado de brilhantíssimas pedras preciosas. Seu sorriso exprimia um afeto de irresistível atração. Ele me chamou pelo nome, tomou-me pela mão, e começou a falar da Congregação Salesiana.

Eu me sentia encantado só em ouvi-lo falar. A um certo ponto, eu o interrompi:

– Com quem tenho a honra de falar? Faça-me o favor de dizer o seu nome.

E o jovem:

– Não se arreceie. Fale com toda a confiança, que está com um amigo.

– Mas, o seu nome?

– Se for necessário, eu lhe direi meu nome. Mas não é preciso, porque você me deve conhecer.

E sorria, dizendo isso.

Observei melhor aquela fisionomia envolta em luz. Oh! Como era bonita! E então reconheci o filho do conde Fiorito Colle, de Toulon, insigne benfeitor da nossa Casa e especialmente das nossas Missões na América! Aquele rapaz tinha morrido pouco tempo antes.

– Oh! É você – eu disse, chamando-o pelo nome. – Luís! E estes outros todos, quem são?

– São amigos dos seus salesianos, e eu, como amigo seu e dos salesianos, em nome de Deus, queria dar-lhe um pouco de trabalho.

– Vamos ver de que se trata. Que trabalho?

– Achegue-se a esta mesa e depois puxe esta corda para baixo.

No meio daquela grande sala havia uma mesa, sobre a qual estava enrolada uma corda, e eu vi que a corda estava marcada como o metro, com linhas e números. Depois percebi também que aquele salão estava situado na América do Sul, exatamente abaixo da linha equatorial, e que os números escritos na corda correspondiam aos graus geográficos de latitude. Peguei então na ponta da corda, observei-a e vi que tinha marcado o número zero.

Eu ria.

E o angélico rapaz:

– Não é o momento de rir – disse-me. – Observe. O que está escrito na corda?

– Zero!

– Puxe um pouco e faça um grande rolo com a corda.

Puxei a corda, e apareceu o número 1.

Puxei mais, e 2, 3, 4, até 20.

– É o suficiente? – perguntei.

– Não. Mais, mais! Puxe até encontrar um nó – respondeu-me o jovem.

Puxei até o número 47, onde encontrei um grande nó. Daquele ponto para diante, a corda continuava, mas estava desfibrada em muitos cordéis que se espalhavam para o nascente, o poente e o sul.

– É bastante? – eu quis saber.

Perguntou o moço:

– Que número é esse?

– É 47.

– 47 mais 3, quanto é?

– 50.

– E mais 5?

– 55.

– Guarde bem: 55.

E depois me disse:

– Puxe mais.

– Cheguei ao fim.

– Agora volte atrás e puxe a corda da outra parte, até o número 10.

O jovem prosseguiu:

– Puxe mais!

– Não tem mais nada.

– Como, não tem nada? Observe mais. Que tem aí?

– Tem água – respondi.

De fato, naquele instante, aconteceu comigo um fenômeno extraordinário, que não é possível descrever-se. Eu me achava naquele salão, puxava aquela corda e, ao mesmo tempo, desdobrava-se a meus olhos o panorama de um país imenso, que eu dominava quase como a voo de pássaro, e que se encompridava à medida que ia se estendendo a corda.

Do primeiro zero até o número 55, era uma extensão de terra que não tinha fim, e, depois de um estreito de mar, ao fundo divisava-se uma centena de ilhas, uma das quais era bem maior que as outras. Àquelas ilhas pareciam aludir os cordéis espalhados que partiam do grande nó. Cada cordel era como a cabeça de uma ilha. Algumas destas eram habitadas por grande número de indígenas. Outras eram áridas, nuas, rochosas, desabitadas. Outras mais, totalmente cobertas de neve e gelo. Do lado do poente, numerosos grupos de ilhas habitadas por muitos selvagens. Depois, na outra parte, de zero a 10, continuava a mesma terra e acabava naquela água que vi por último.

[Parece que o nó colocado sobre o grau 47 assinalava o ponto de partida, o centro salesiano, a missão principal de onde os nossos missionários se espalhavam até as Ilhas Malvinas, à Terra do Fogo e às outras ilhas daquelas regiões da América].

Do lado oposto, ou seja, do 0 ao 10, continuava a mesma terra, terminando naquela água que eu havia visto por último. Pareceu-me que aquela água era o Mar das Antilhas, que eu via então de um modo tão surpreendente, que não é possível expressar com palavras aquele modo de ver.

Quando eu exclamei: – Tem água! – o rapazinho me respondeu: – Agora some 55 mais 10. Quanto dá?

E eu:

– Dá 65.

– Agora junte tudo, e fará uma corda só.

– E depois?

– Que que tem desse lado? – e me indicava um ponto do panorama.

– Do lado do poente, vejo montanhas altíssimas, e do lado do nascente, o mar.

[Devo observar aqui que eu via em conjunto, como em miniatura, tudo o que depois vi, como direi?, em sua real grandeza e extensão, e os graus assinalados na corda, correspondentes com exatidão aos graus geográficos de latitude, foram os que me permitiram reter na memória, por vários anos, os pontos sucessivos que visitei ao fazer a viagem na segunda parte deste sonho].

O meu jovem amigo prosseguia:

– Pois bem: estas montanhas, são como uma margem, um limite. Daqui até lá, é a messe oferecida aos salesianos. São milhares e milhões de habitantes que esperam o vosso auxílio, esperam a fé.

Aquelas montanhas eram as cordilheiras da América do Sul, e aquele mar era o Oceano Atlântico.

– E como fazer? – eu repliquei. – Como haveremos de trazer tantos povos ao rebanho de Jesus Cristo?

– Como fazer? Olhe!

E eis que chega D. Lago[2], trazendo uma cesta de figos pequenos e verdes, e que me disse:

– Tome, Dom Bosco.

– Que me trazes? – perguntei, examinando o que continha a cesta.

– Disseram-me que lhos trouxesse.

– Mas estes figos não estão bons de se comer. Não estão maduros.

Então, o meu jovem amigo tomou a cesta, que era muito larga mas pouco funda, e ma apresentou, dizendo:

– É o presente que lhe faço.

– E que devo fazer com estes figos?

– Estes figos estão verdes, mas pertencem à grande árvore da vida. Procure o meio de amadurecê-los.

– Mas como? Se fossem maiores... poderiam amadurecer na palha, como se faz com as outras frutas. Mas pequenos assim... verdes... Não dá...

– Pois saiba que, para amadurecer estes figos, é preciso fazer que todos sejam de novo pegados à planta.

– Isso é incrível! Como fazer?

– Veja.

E tomou um daqueles figos e o mergulhou em um pequeno vaso cheio de sangue, depois em outro vaso cheio de água, dizendo:

– Com suor e sangue, os selvagens voltarão a ser unidos à planta e se tornarão agradáveis ao Senhor da vida.

Eu pensava: mas é preciso tempo para se conseguir isso. E exclamei em voz alta:

– Não sei mais o que responder.

Mas o caro jovem, lendo meus pensamentos, prosseguiu:

– Isto será alcançado antes que passe a segunda geração.

– E qual será a segunda geração?

– A presente não se conta. Será outra e depois outra.

Eu falava, confuso, embaraçado e quase balbuciando, ao escutar os magníficos destinos que estão preparados para a nossa Congregação, e perguntei:

– Mas quantos anos abrange cada uma dessas gerações?

– Sessenta anos.

– E depois?

– Quer ver o que virá depois? Venha!

E, sem saber como, encontrei-me em uma estação de trens, onde havia muita gente. Subimos para o trem.

Eu perguntei onde estávamos. O jovem respondeu-me:

– Veja bem. Observe. Nós sairemos em viagem ao longo das Cordilheiras. Você tem também a estrada aberta rumo ao nascente até o mar. É outro dom do Senhor.

– E a Boston, onde nos esperam, quando iremos?

– Cada coisa em seu tempo.

E, assim falando, puxou um mapa em que aparecia, em grande relevo, a diocese de Cartagena. [Era aquele o ponto de partida].

Enquanto eu observava o mapa, a locomotiva apitou e o trem se pôs em movimento. Durante a viagem, o meu amigo falava muito, mas eu não podia entendê-lo completamente, devido ao barulho do trem. Em todo caso, aprendi coisas belíssimas e novas sobre astronomia, navegação, meteorologia, mineralogia, e sobre a flora, a fauna, a topografia daquelas regiões, que ele explicava com maravilhosa precisão. Ao mesmo tempo, ele temperava as palavras com uma reservada e terna familiaridade, de modo a demonstrar o quanto de afeição me devotava. Desde o começo me havia tomado pela mão e a segurou afetuosamente assim, até o fim do sonho. De vez em quando eu levava a minha outra mão livre sobre a sua, a qual, no entanto, parecia desaparecer debaixo da minha, quase se evaporando, de modo que a minha mão esquerda apertava somente a minha mão direita. O jovem sorria ao ver a minha inútil tentativa.

Enquanto isso, eu olhava pela janela do trem, e via variadas e estupendas regiões desfilarem à minha vista. Florestas, montanhas, planícies, rios extensíssimos e majestosos, que eu não podia imaginar fossem tão grandes em regiões tão distantes da foz. Por mais de mil milhas costeamos as extremidades de uma floresta virgem, até hoje inexplorada. A minha vista ganhava um alcance visual maravilhoso. Não sentia obstáculos para se espraiar por aquelas regiões. Não sei explicar como tão surpreendente fenômeno se passava aos meus olhos. Eu estava como quem, do alto de uma colina, vendo uma grande região estendida a seus pés, coloca diante dos olhos, a pequena distância, uma tira muito estreita de papel, e depois não vê mais nada ou vê bem pouco; mas quando afasta a tira de papel, ou a levanta ou a abaixa um pouco, a sua vista pode abarcar o extremo horizonte. Foi o que me aconteceu com aquela extraordinária intuição que adquiri, mas com esta diferença: à medida que eu fixava um ponto, e este ponto passava diante de mim, era como se, um depois do outro, se levantassem sucessivos panos de teatro, e eu contemplava intermináveis e incalculáveis distâncias. Não via só as Cordilheiras, mesmo quando estavam longe, mas também as cadeias de montanhas isoladas naquelas planícies incomensuráveis em cada um de seus menores acidentes [as da Nova Granada, da Venezuela, das três Guianas, e as do Brasil e da Bolívia, até os seus últimos confins].

Pude então verificar a exatidão das frases ouvidas, no princípio do sonho, no grande salão, situado no grau zero. Eu via os penetrais das montanhas e as camadas profundas das planícies. Tinha sob os olhos as riquezas incomparáveis destes países, que um dia serão descobertas. Via numerosas minas de metais preciosos, camadas inesgotáveis de carvão fóssil, depósitos de petróleo tão abundantes, como até hoje não se encontraram em outros lugares. Mas isso não era tudo. Entre os graus 15 e 20, existia uma enseada muito larga e longa, que partia de um ponto onde se formava um lago.[3] Então, uma voz disse repetidamente:

– Quando vierem a ser escavadas as minas escondidas no meio destes montes, aparecerá aqui a terra prometida, manando leite e mel. Será uma riqueza inconcebível.

Mas também isso ainda não era tudo. O que me mais surpreendeu foi ver, em várias partes, as cordilheiras dobrando-se e formando vales de cuja existência os geógrafos atuais nem sequer suspeitam, imaginando que, naquelas partes, as faldas das montanhas foram algo como uma espécie de muralha cortada a pique. Naquelas encostas e vales que, às vezes, se alargavam a milhares de quilômetros, habitavam densas populações que ainda não tiveram contato com os Europeus, povos ainda inteiramente desconhecidos.

O trem, entretanto, continuava a correr, e corria, e corria, e, depois de girar para um lado e para outro lado, finalmente parou. Então, desembarcou grande parte de passageiros que passavam por baixo das cordilheiras indo para o poente.

[Dom Bosco se referia à Bolívia. A estação talvez fosse La Paz, onde uma galeria, abrindo passagem para o litoral do Pacífico, pode fazer a comunicação do Brasil com Lima por meio de outra estrada de ferro].

O trem pôs-se de novo em movimento, seguindo sempre adiante. Como na primeira parte da viagem, atravessamos florestas, penetramos em túneis, passamos sobre gigantescos viadutos, internamo-nos em gargantas de montanhas, costeamos lagos e pântanos sobre pontes, atravessamos rios largos, corremos através de campos e prados. Passamos pelas margens do rio Uruguai. Eu pensava que fosse um rio de pequeno curso, mas, pelo contrário, é muito longo. Em um ponto vi o rio Paraná, que corria perto do Uruguai, como se lhe viesse trazer o tributo de suas águas, mas, depois de correr um bom trecho quase paralelamente, afastava-se, formando um grande cotovelo. Esses dois rios eram muito caudalosos. [Por esses poucos dados, parece que essa futura ferrovia, partindo de La Paz, chegará a Santa Cruz, passando pela única abertura que há nos montes Cruz de la Sierra e é atravessada pelo rio Guamay, bordejará o rio Parapiti na província de Chiquitos, na Bolívia, cortará a extremidade norte da República do Paraguai, entrará na província de São Paulo, no Brasil, até terminar no Rio de Janeiro. De uma estação intermediária, na província de São Paulo, partirá talvez a linha de ferro que, passando entre o rio Paraná e o rio Uruguai, unirá a capital do Brasil à República do Uruguai e à República Argentina].

E o trem continuava a sua corrida, girando de uma parte para outra, e, depois de um longo tempo, parou segunda vez. Aí também muita gente desembarcou, passando outra vez por baixo das cordilheiras, rumo ao poente. [Dom Bosco indicou, na República Argentina, a província de Mendoza. Portanto, a estação era talvez Mendoza e o túnel levava a Santiago, capital da República do Chile].

O comboio retomou a viagem através dos Pampas e da Patagônia. Os campos cultivados e as casas esparsas por uma parte e outra indicavam que a civilização tomava posse daqueles desertos.

Quando começou a percorrer a Patagônia, passamos um afluente do rio Colorado ou do Chubut [ou talvez do rio Negro?]. Eu não podia ver para que lado corria, se para as cordilheiras ou em direção ao Atlântico. Tentava resolver este meu problema, mas não era possível orientar-me.

Chegamos por fim ao Estreito de Magalhães. Eu observava. Desembarcamos. Estava em Punta Arenas. Na extensão de várias milhas, o chão estava todo ocupado com depósitos de carvão fóssil, tábuas, troncos de madeira, montões de metal, parte em estado bruto, parte trabalhado. Filas compridas de vagões de carga estavam sobre os trilhos.

Meu amigo mostrou-me todas aquelas coisas. Eu lhe perguntei:

– E agora, o que você quer dizer com isto?

Ele me respondeu:

– O que é um projeto agora, será realidade um dia. Estes selvagens serão tão dóceis no futuro, que eles mesmos virão receber instrução, civilização e comércio. Aquilo que, em outros lugares, é motivo de admiração, aqui o será tanto, que vai superar tudo quanto agora causa estupor entre todos os outros povos.

– Já vi bastante – repliquei. – Leve-me agora para ver os meus salesianos na Patagônia.

Voltamos à estação e tomamos outra vez o trem para voltar. Depois de haver percorrido um longuíssimo trecho do caminho, o trem parou diante de um povoado de tamanho considerável. [Situado talvez no grau 47, onde, no início do sonho, havia visto o grande nó da corda]. Na estação não havia ninguém a esperar-me. Desci e logo encontrei os salesianos. Aí, havia muitas casas e grande número de habitantes: várias igrejas, escolas, vários internatos para jovenzinhos e adultos, artesãos e agricultores, e um educandário para meninas, que se ocupavam de vários serviços domésticos. Os nossos missionários orientavam, a um só tempo, meninos e adultos.

Eu me coloquei no meio deles. Eram muitos, mas eu não os conhecia e entre eles não estava nenhum dos meus antigos filhos. Todos me olhavam maravilhados, como a um desconhecido, e eu lhes dizia:

– Vocês não me conhecem? Não conhecem Dom Bosco?

– Oh! D. Bosco nós o conhecemos de fama, mas nunca o vimos, a não ser nos retratos. Pessoalmente, decerto que não!

– E Dom Fagnano, Dom Costamagna, Dom Lasagna, Dom Milanesio,[4] onde é que estão?

– Nós não chegamos a conhecê-los. Eles são dos que vieram para aqui nos tempos passados, os primeiros salesianos que chegaram da Europa para estes países. Mas já se passaram muitos anos desde que morreram.

Àquela resposta, eu pensei, maravilhado:

– Mas isto é um sonho ou é realidade?

E batia palmas, apalpava-me os braços, me sacudia, enquanto realmente escutava o som das minhas mãos, sentia-me a mim mesmo e me certificava que não estava dormindo.

A visita foi coisa de um instante. Vendo o progresso maravilhoso da Igreja Católica, da nossa Congregação e da civilização naquelas regiões, eu agradecia à Divina Providência por dignar-se ter-me utilizado como instrumento da sua glória e da salvação de tantas almas.

Mas já o jovem Colle fez-me sinal que era tempo de partir: despedi-me, portanto, dos meus salesianos. Voltamos à estação. A locomotiva apitou. Partimos rumo ao norte.

Causou-me maravilha uma novidade que me caiu debaixo dos olhos. O território da Patagônia, na parte mais vizinha do Estreito de Magalhães, entre as cordilheiras e o Atlântico, era menos largo do que acreditam comumente os geógrafos.

O trem avançava em carreira velocíssima e pareceu-me percorrer as províncias já agora civilizadas da República Argentina.

Prosseguindo, adentramos uma floresta virgem, extensíssima, enorme, interminável. Em certo ponto, o trem parou, e um doloroso espetáculo apareceu aos nossos olhos. Uma grande multidão de selvagens estava reunida em uma clareira no meio da floresta. Eram figuras disformes e repugnantes, vestidos, pelo que parecia, de peles de animais cosidas umas às outras. Rodeavam um homem amarrado, que estava em uma pedra, e muito gordo, porque os selvagens trataram de engordá-lo. Aquele coitado fora feito prisioneiro e, pela maior regularidade de suas feições, parecia pertencer a uma nação estrangeira. O bando de selvagens o interrogava, e ele respondia narrando as várias aventuras de suas viagens. Logo, um selvagem se levanta, brandindo um ferro grosso, que não era espada mas estava muito afiado, atira-se sobre o prisioneiro e, de um só golpe, corta-lhe a cabeça. Todos os viajantes lançaram-se às janelas e portinholas do trem, observando a cena e mudos de horror. O próprio Colle olhava e calava. A vítima soltou um grito excruciante, ao ser ferida. Sobre o cadáver, que jazia em um lago de sangue, lançaram-se então aqueles canibais, que o fizeram em pedaços e puseram aquelas carnes ainda quentes e palpitantes ao fogo que tinham acendido, e assando-as um pouco, devoraram-nas meio cruas. Ao grito do desgraçado, o trem se pôs em movimento, pouco a pouco retomando a sua vertiginosa carreira.

Por longuíssimas horas seguimos viagem margeando um rio extensíssimo, ora pela margem direita, ora pela esquerda. Da janela do trem, eu não me preocupei em saber sobre que pontes fazíamos o percurso. Entretanto, numerosas tribos selvagens apareciam de vez em quando naquelas margens. E toda vez que as víamos, o jovem Colle repetia:

– Eis aí a messe dos salesianos.

Depois, entramos em uma região cheia de animais ferozes e de répteis venenosos, de formas estranhas e horríveis, que formigavam nos sopés das montanhas, nos seios das colinas, nos montes e elevações por esses sombreadas, nas beiras dos lagos, nas margens dos rios, nas planícies, nos declives, nas ribanceiras. Alguns assemelhavam-se a cães com asas e eram extraordinariamente barrigudas [gula, luxúria, soberba]. Outros eram sapos enormes, que comiam rãs. Certos lugares escondidos estavam cheios de animais desconhecidos para nós. Aquelas três espécies de animais estavam todas misturadas, grunhiam surdamente como se quisessem morder-se entre si. Viam-se tigres, hienas, leões, mas de forma diversa dos da Ásia e da África. O meu companheiro dirigiu-me a palavra e, mostrando aquelas feras, exclamou:

– Os salesianos as amansarão.

Mas já o trem chegava ao ponto de onde havíamos partido. O jovem Colle apanhou um mapa, de estupenda beleza, e me falou:

– Você quer ver a viagem que fez, as regiões por onde andamos?

– Com muito prazer! – respondi.

Ele então abriu o mapa, no qual estava desenhada, com maravilhosa exatidão, toda a América do Sul. E mais: nele estava representado tudo quanto foi, tudo quanto é, tudo quanto será, naquelas regiões, mas sem confusão, e com uma clareza tal que tudo se via de uma só vista de olhos. Eu compreendi tudo, mas, pela multiplicidade das circunstâncias, aquela clareza durou pouco tempo e agora tenho o espírito em plena confusão.

Enquanto eu observava aquele mapa e esperava que o jovem me desse mais alguma explicação, agitado pela surpresa do que tinha sob os olhos, parecia que Quirino[5] tocava as ave-marias do amanhecer. Foi quando despertei e me dei conta que era o toque dos sinos da paróquia de São Benigno.

O sonho tinha durado toda a noite.

D. Bosco concluiu a sua narração, dizendo:

– Com a doçura de São Francisco de Sales, os salesianos hão de atrair a Jesus Cristo as populações da América. Será dificílimo moralizar os selvagens, mas os seus filhos obedecerão com toda facilidade às palavras dos missionários, e com eles serão fundadas colônias, a civilização sucederá à barbárie e assim muitos selvagens virão a fazer parte do rebanho de Jesus Cristo.

Notas de explicação

1- Convém observar a curta distância entre a data da escavação do primeiro poço de petróleo (1859, na Pensilvânia, Estados Unidos) e a da referência ao combustível neste sonho. (N. do T.)
2- Dom Ângelo Lago, secretário particular de Dom Rua, morto em conceito de santidade, em 1914. [Dom Miguel Rua foi o primeiro sucessor de Dom Bosco, como superior-geral dos padres salesianos].
3- É essa a referência específica à cidade de Brasília, situada entre os graus 15 e 20, observar a menção ao Lago Paranoá.
4- Primeiros missionários salesianos na América. Dom Luís Lasagna iniciou a obra salesiana no Brasil. (N. do T.)
5-Irmão leigo (coadjutor), salesiano, matemático e...sineiro.

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