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Coluna do Sarney
José Sarney é ex-presidente da República.
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Um conto de Natal

Dona Carlota vivia da caridade dos vizinhos, que sempre lhe deixavam no corredor um prato de comida.

José Sarney

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Dona Carlota vivia a sua vida de um século num velho sobradão de azulejos coloniais, em São Luís do Maranhão, envolta na solidão e nos mistérios de sua velhice final. Dali viu saírem em cortejo fúnebre os corpos dos pais; em seguida, o do marido e, depois, da filha única, que lhe contrariou o desejo de morrer primeiro, para não ficar sozinha. Os netos perderam-se nos caminhos do mundo e a abandonaram naquela morada, de onde nunca mais saiu. Só lhe restou o velho sobrado de três andares, onde havia tempo a grande família vivia, folgadamente, importando roupas e vinhos da Europa. Sua linhagem era a dos tradicionais comerciantes de algodão, no Maranhão das “soirées blanches”, do século 19.

Dona Carlota era uma sobrevivente daqueles tempos. Recusara-se a morrer. Com os anos, foi perdendo o corpo e as posses. Primeiro, os cabelos pretos e a beleza; depois as joias, a prataria e, mais adiante, as louças, os serviços da Índia, os quadros, os conjuntos de palhinha D. João V, os lustres e aparadores de cristal. Os salões foram ficando vazios, vazias as paredes, vazia a sala de jantar; o teto arriando, as telhas caindo, os forros despedaçados, as portas apodrecidas, aldrabas enferrujadas, janelas com vidros partidos, que não fechavam. Havia em tudo um cheiro de mofo e um ar de abandono. Dona Carlota confinou-se no velho quarto, com seus gatos e fantasmas. Comprou o que comer, durante muitos anos, com a venda dos seus pertences. Agora, vivia da caridade dos vizinhos, que sempre lhe deixavam no corredor um prato de comida.

Com o tempo e os invernos de tempestades, o sobradão começou a desmoronar: perigo para a moradora. O corpo de bombeiros interditou o imóvel, mas Dona Carlota se recusava a sair. A cidade acompanhava o seu drama. Seu mundo era o sobradão e seus gatos. E os fantasmas, que chegavam com os ventos da noite.

Certa vez, num Natal, perto da hora da Missa do Galo, mendigos, que se refugiavam na parte térrea do seu sobradão sem portas, encontraram no lixo uma caixa de sapatos vazia e resolveram fazer uma brincadeira de mau gosto com a Dona Carlota: iam levar a caixa vazia como se fosse um presente de Natal para a velha senhora de cabelos brancos e desgrenhados, que vivia escondida e de quem, vez ou outra, roubavam a comida. Fizeram um tosco pacote, enrolado com papel de embrulho, também achado na lixeira. E, sob a meia-luz que se formava a partir da rua, numa sombria diversão, subiram a escada de tábuas quebradas, com o corrimão coberto de excrementos de morcegos. Subiram trôpegos os degraus e chegaram ao antes grande e aristocrático salão dos banquetes, agora reduzido a lixo e abandono, teias de aranha, poeira e podridão.

 — Dona Carlota, trouxemos um presente de Natal para a senhora — disseram três vezes, cada um por seu turno.

Ela, que há tantos anos não recebia um gesto de amor, que do Natal só conhecia a solidão, aproximou-se deles, lamparina à mão. Olhou-os com benevolência, mas nada falou. Recebeu a caixa, desamarrou o cordão, retirou o papel que a envolvia, e a sua face se iluminou. Os olhos brilhavam, e o rosto exprimia um sorriso de grande felicidade.

Os mendigos, estranhando a sua reação, lhe perguntaram:

— O que a senhora ganhou, Dona Carlota?

A velha senhora, olhando o interior da caixa vazia, onde via a coisa mais bela do mundo, respondeu-lhes:

— Um beijo de São José e Nossa Senhora, que vieram passar o Natal comigo.

Os sinos da Igreja do Convento do Carmo tocaram em Aleluias.


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