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COLUNA
Kécio Rabelo
Kécio Rabelo é advogado e presidente da Fundação da Memória Republicana Brasileira.
Kécio Rabelo

Janelas

Aquela janela não tinha nada de especial. Era só uma moldura antiga, madeira cansada, vidro embaçado pelo tempo.

Kécio Rabelo

Atualizada em 21/11/2025 às 18h07

Aquela janela não tinha nada de especial. Era só uma moldura antiga, madeira cansada, vidro embaçado pelo tempo. Mas bastou que Nalva parasse diante dela — quase por acaso, quase por descuido — para que o mundo começasse a se projetar ali como se fosse uma tela viva, inquieta, pulsante.

Do outro lado, a correria das ruas parecia um filme acelerado: gente que passava sem ver, passos que não se cruzavam, olhares que se evitavam. Nalva via as desigualdades desenhadas como sombras: o homem que dormia no chão ao lado do menino que vendia balas; a mulher que corria porque estava atrasada; o sujeito ao telefone tentando provar importância. Via também a indiferença, essa camada grossa que recobre a cidade e as pessoas, como se todos estivessem vestidos com uma armadura invisível para não sentir nada — nem o outro, nem a si mesmos.

E quando desviou o olhar para o lado, Nalva sentiu um estranhamento ainda maior. O que via eram reproduções de posturas. Movimentos iguais, gestos repetidos, expressões fabricadas. Parecia que as pessoas estavam sendo produzidas em série — como se houvesse um molde silencioso determinando a forma de andar, de falar, de existir.
Um medo profundo de carregar suas próprias marcas, suas rugosidades, sua verdadeira aparência e essência.

Uma necessidade sufocante de padronização.

E quanto mais observava, mais percebia um vazio que não era só dos outros, mas também dela. Um vazio que se revelava no reflexo do vidro: Nalva, parada, tentando entender onde terminava o mundo e onde começava a própria alma. Num instante chorou. Noutro se irritou. Em todos, perguntou. Como se cada gesto lá fora atravessasse o vidro e a atravessasse por dentro.

Houve um momento em que quis se afastar. Sentiu-se presa à cena — como se a janela não fosse uma abertura, mas um portal onde tudo convergia para um único ponto de tensão. Era como se estivesse diante de si mesma pela primeira vez: uma espectadora perplexa de sua própria vida, das escolhas que adiou, das palavras que não disse, das dores que se acostumou a carregar.

Mas então, num sopro quase imperceptível, ela entendeu: aquela janela não mostrava apenas o mundo. Ela a convidava a vê-lo. A questioná-lo. A enfrentá-lo. A não se conformar com o ritmo imposto, com o silêncio confortável, com o vazio que se disfarça de rotina.

Aquela janela, que parecia uma fronteira, abriu-se como liberdade.
Liberdade de sentir.
De não aceitar.
De se reinventar.
De reconhecer que, antes de mudar o mundo que via, precisava decifrar o mundo que era.
E ali, entre o vidro e o vento, Nalva percebeu: às vezes, basta uma janela para que a vida deixe de ser apenas cena — e se torne escolha.


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