Travesseiro
Entre o peso da noite e a chance do dia, Bengonha descobre que até o silêncio tem voz.
A entrevista começou num lugar que não sei dizer se era sonho ou madrugada. Bengonha estava deitada, o cansaço espalhado pelo corpo, quando seu travesseiro resolveu falar. Não se sabia se era delírio, memória ou apenas o silêncio que finalmente se cansou de calar.
— Então — disse o travesseiro, num tom macio, quase de algodão —, quando você vai me contar o que carrega nessas noites sem sono?
Bengonha arregalou os olhos. Como poderia haver testemunha mais íntima? Cúmplice de lágrimas abafadas, de suspiros contidos, de gritos que nunca chegaram à luz do dia.
— Não tenho o que contar — tentou mentir.
O travesseiro riu, um riso leve, que parecia ranger como penas amassadas.
De repente, como se fosse uma tela acesa no escuro, o travesseiro começou a projetar mensagens desconexas: palavras soltas, vontades, desejos inacabados, lembranças confusas de sonhos interrompidos. Era como se a mente dela tivesse se espalhado diante dos olhos, sem ordem, sem coerência.
— Reconhece essas vozes? — perguntou o travesseiro. — São os rastros que você deixa ao correr sem destino. Onde você estava em cada uma dessas pressas? Para onde ia?
Bengonha permaneceu muda, mas sentiu um peso na pergunta seguinte, que caiu sobre ela como quem cutuca uma ferida:
— Afinal, o que é o tempo de dormir e o que é o tempo de acordar?
O diálogo seguiu, entre cortes de silêncio. O travesseiro acusava Bengonha de esconder, de mascarar, de viver entre a aparência e o abismo. Ela tentava justificar: a vida exige máscaras, exige firmeza, exige passos que não tremem.
Mas o travesseiro, firme, retrucava:
— Você anda cansada de fingir que a rotina tem sentido. Anda cansada de levantar como se houvesse uma missão clara, quando no fundo só arrasta os pés. Esse cansaço não é de trabalho, Bengonha, é de existir.
Sem força para negar, ela fechou os olhos.
Naquele instante, percebeu que o travesseiro não era só pano e enchimento: era espelho. Guardava o que ninguém podia ver. Guardava os segredos que, se expostos, talvez o mundo não suportasse.
— O que faço com isso? — perguntou, quase implorando.
O travesseiro respondeu simples, como quem já tinha esperado muito tempo para dizer:
— Deixe-me ser confidente, mas não prisão. O peso da noite não precisa seguir com você ao amanhecer. Deixe em mim o que não cabe na vida. E, ao acordar, lembre-se de que o real não é só dor: também é chance.
Bengonha despertou. Ou pensou que despertou. O quarto estava igual, mas havia uma leveza estranha. Olhou o travesseiro, calado como sempre, mas já não duvidava: se há segredos que ninguém escuta, é porque só quem sonha consegue entrevistar o silêncio.
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