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COLUNA
Sônia Amaral
Sônia Amaral é desembargadora do Tribunal de Justiça do Maranhão.
Sônia Amaral

Enquanto isso, na Sala da Justiça no Brasil…

O sistema de justiça brasileiro é criticado, com razão, por diversos motivos.

Sônia Amaral

Quem me lê já sabe que faço parte da magistratura. Afinal, o título vem logo depois do meu nome. Por isso, falar sobre o sistema de Justiça me é algo natural — e gosto do tema, principalmente porque somos alvo constante de críticas.

Mas, quase sempre, não escrevo sobre isso com a intenção de mudar a percepção negativa que existe sobre o Judiciário. Num regime democrático, a crítica deve ser vista com naturalidade, especialmente por quem ocupa funções ou cargos públicos. Além disso, eu mesma tenho muitas críticas ao funcionamento da Justiça no nosso país.

O sistema de justiça brasileiro é criticado, com razão, por diversos motivos. Por isso, vou focar apenas em um ponto, que tem ligação direta com um tema bastante debatido atualmente: a (in)segurança pública no Brasil.

Em geral, quem descarta as causas sociais como explicação para o aumento da criminalidade costuma apontar dois culpados: leis muito brandas e interpretações judiciais sempre favoráveis a quem comete crimes.

Sem entrar no mérito dessas críticas, quero propor uma reflexão a partir de uma questão que, na minha visão, está na raiz do problema da insegurança pública: o modelo de Justiça adotado no Brasil. Por aqui, seguimos o sistema da civil law.

Anos atrás, li um livro muito interessante: A tradição da civil law, escrito por John Henry Merryman, professor de Stanford, e Rogelio Pérez-Perdomo, professor de Harvard, doutor em Direito e venezuelano. A leitura me fez refletir se os problemas do Judiciário brasileiro não teriam origem justamente no modelo que escolhemos: a tradição da civil law.

Antes de continuar, para quem não está familiarizado com os termos jurídicos, vale explicar a diferença entre civil law e common law. Em resumo, no primeiro modelo, as decisões se baseiam nas leis — ou seja, normas escritas pelo Legislativo. Já no segundo, prevalecem os precedentes judiciais, ou seja, decisões anteriores tomadas pelo próprio Judiciário com base nos costumes da sociedade.

Vejamos: no modelo da civil law, os tribunais decidem com base naquilo que está previsto nos códigos, que são quase sempre elaborados por comissões compostas por professores renomados. Já no common law, as decisões dos juízes partem da realidade vivida pela sociedade, pelos seus costumes — e, assim, formam precedentes.

O reflexo disso é que, nas universidades que seguem o modelo common law, as decisões judiciais são o ponto de partida: elas são estudadas e analisadas à luz da Constituição e da sua pertinência com o tempo. No sistema da civil law, o Judiciário, na prática, acaba seguindo aquilo que pensa a Academia, já que os “notáveis” são os autores indiretos das normas.

Um parêntese: é verdade que muitas leis são feitas no Brasil sem a contribuição adequada das universidades, e por isso mesmo recebem críticas quanto à sua qualidade técnica. Não é sobre isso que quero falar agora — essa é uma discussão longa. Aqui, me refiro especificamente aos códigos, que quase sempre saem da pena de professores renomados.

Conheço muitos professores que conseguem aliar teoria e prática. Mas confesso: também conheço muitos outros (a maioria, aliás) que, depois de fazerem mestrado e doutorado no exterior — especialmente na Europa —, embarcam em teorias belíssimas, mas que, quando aplicadas à realidade brasileira, em vez de resolverem os conflitos, acabam agravando-os. Como disse certa vez a ministra Cármen Lúcia, ao comentar sobre um instituto jurídico criado na Alemanha que outro ministro queria aplicar a um caso em julgamento: “O problema é que no Brasil tem poucos alemães.”

Esse é um risco real, com o qual me deparo diariamente como julgadora: normas bem-intencionadas, baseadas em teorias sofisticadas, mas distantes da realidade brasileira — uma realidade marcada por problemas sociais complexos e uma criminalidade com contornos muito próprios. O ser humano é um só, do ponto de vista filosófico, mas reage de maneira diferente conforme o meio social em que está inserido e os incentivos (ou desvantagens) que encontra ao adotar determinado comportamento.

Por tudo isso, fico me perguntando se não está na hora de colocarmos os pés no chão — mas no chão do Brasil, e não no de outros países —, e escutarmos mais quem vive esse drama de perto: juízes da área penal, policiais, promotores, advogados e gestores da segurança pública. É preciso entender suas dificuldades e, principalmente, as soluções que apontam para enfrentar a criminalidade no nosso país.

Porque, no fim das contas, copiar o modelo alheio sem ajustar ao nosso contexto é como usar casaco europeu no sertão: bonito na teoria, mas sufocante na prática.

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