(Divulgação)
COLUNA
Sâmara Braúna
Advogada criminalista especializada em Direito Penal. Conselheira Estadual da OABMA.
Sâmara Braúna

A invisibilidade do borderline no processo penal

“A inimputabilidade que o Direito Penal não pode ignorar”

Sâmara Braúna

Este é um caso real que desaguou em meu escritório. Não é um caso recente, mas resolvi escrever sobre o assunto porque somente agora veio uma resposta e quero trazer ao debate o grande desafio que foi, de desenvolver uma tese sobre uma realidade ainda pouco explorada, tanto pela literatura jurídica quanto pelos tribunais. Explico:

Recebi em meu escritório um homem jovem, primário, sem antecedentes criminais, ocupação lícita, família estruturada, que havia se envolvido em um episódio de agressão, lesão corporal leve. 

Durante a entrevista percebi naquela fala um traço de sofrimento psíquico profundo, com histórico de instabilidade emocional; impulsividade descontrolada para uso de bebidas alcóolicas e drogas; comportamento autodestrutivo; diversas tentativas de autoextermínio; autolesões e passagens por clínicas, quando surgiu a revelação. “Sou border”.

Após a consulta, assumi o caso: acusação de crime de lesão corporal, o que poderia parecer simples. De fato, até poderia ser, se não fosse contra uma mulher com quem se relacionava e, portanto, a Lei Maria da Penha veda o rito dos juizados especiais, tornando o caso complexo.

Resolvi estudar e analisar a profundidade de uma frase dita pelo cliente que muito me marcou: “Ser border é viver o caos.” 

Não tive dúvida de que, diante de mim, estava sentando um homem em colapso e não um criminoso.

Pois bem!

Debrucei sobre o assunto “Transtorno de Personalidade Borderline”. Pedi ao cliente um relatório do psiquiatra que o acompanhava; pedi um parecer técnico de um psiquiatra especialista em transtornos de personalidade que muito admiro e de posse de todo material, me deparei com um grande desafio porque descobri que a pessoa que sofre de borderline, quando entra em surto, em crise, perde a capacidade de frear impulsos.

Ali surgia a minha tese de defesa, a base concreta para sustentar o que eu já sabia no íntimo: que aquele homem não tinha plena capacidade de autodeterminação no momento do fato.

A partir daí, assumi o risco: sustentei a inimputabilidade penal por ausência de capacidade de autodeterminação, com base no artigo 26, caput, do Código Penal, todavia, novamente me deparei com outra barreira quase intransponível: a doutrina penal praticamente ignora a pessoa que sofre de borderline e a jurisprudência trata o transtorno com superficialidade, na verdade, mal toca no assunto pois trata o sofrimento do “border” como desvio de personalidade “não incapacizante”.

Deixando a hipocrisia de lado, sabemos que vivemos em um cenário onde a psiquiatria forense ainda é lida com filtros morais. 

Defender um borderline acusado de crime é quase um ato de resistência, porque, no fundo, a pessoa que sofre de borderline é triplamente vítima: da própria mente, da ignorância social e da indiferença jurídica. 

Mas eu insisti. Pedi a instauração do incidente de insanidade mental. 

O magistrado encaminhou o processo para a perícia oficial e veio a ratificação do que o parecer técnico da defesa já apontava: transtorno mental, colapso psíquico.

Então veio a alegria: o juiz deferiu a instauração do incidente e vi ali a oportunidade de desenvolver um debate, até então cego, surdo e moralista. 

Vejo no incidente, um raio de luz de humanidade em uma máquina de moer gente, que é o nosso sistema punitivista.

A pessoa que sofre de borderline não escolhe surtar, não premedita, não planeja ferir, ela simplesmente implode e depois explode, em absoluta imprevisibilidade. 

Ninguém escolhe sofrer de Borderline. Não está na capacidade de quem sofre do transtorno, o voluntarismo, mas sim, é vítima de um comportamento de excessos e incontrolável em razão de uma desregulação emocional que é patológica.

O criminoso decide, o borderline não, ele colapsa! Vive no limite. É limítrofe!

É possível que, para muitos, a instauração de um incidente de insanidade mental pareça apenas uma medida processual comum, mas neste caso específico, diante de uma pauta ideológica tão desenfreada, vejo como um grande passo para o avanço do processo penal. 

Significou, para mim, que o sofrimento mental precisa ser respeitado como fato jurídico relevante e não varrido para debaixo da toga. Foi uma demonstração de um gesto de lucidez judicial, que escutou a defesa ao invés de julgar automaticamente.

O que eu pedi à Justiça não foi impunidade, foi uma chance de resgatar um ser humano de condenações simbólicas e populistas. 

Pedi uma chance para que este homem tenha um processo penal justo, com o reconhecimento de que a sanção penal não pode recair sobre quem agiu sem liberdade de escolha.

O incidente ainda está na gênese, na fase de quesitação, mas abrimos um espaço para falarmos, com mais profundidade, sobre o Transtorno de Borderline no sistema penal e mostrar que não é um transtorno banal, não é “manipulativo”, “conveniente”, “uma desculpa”. 

Esse caso me marcou e eu resolvi compartilhar porque me fez reafirmar que a verdadeira coragem, no Direito Penal, é defender o ser humano quando o sistema já decidiu que ele não merece defesa. 

Sâmara Braúna é advogada há 24 anos, criminalista, especialista em liberdade, garantias constitucionais, em violência de gênero e crimes sexuais. Pós-graduada em Direito Penal. Conselheira Estadual OAB/MA.


 


 

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