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COLUNA
Kécio Rabelo
Kécio Rabelo é advogado e presidente da Fundação da Memória Republicana Brasileira.
Kécio Rabelo

O laço do meu sapato

Demorei muito a aprender a dar laço em meu sapato. Todo dia pela manhã, como se vivesse um ritual de passagem, surgia o mesmo drama na hora de ir pra escola.

Kécio Rabelo

Demorei muito a aprender a dar laço em meu sapato. Todo dia pela manhã, como se vivesse um ritual de passagem, surgia o mesmo drama na hora de ir pra escola. Mochila arrumada, uniforme e até vontade de estudar; mas o laço do tênis por fazer me desafiava. A cada tentativa, um nó; a cada nó, uma chateação marco daquele que era um desafio a ser vencido.

Meu pai tinha paciência e era dele quase sempre a tarefa de ajudar-me com o laço. Poucas vezes lembro dele mesmo ter assumido a tarefa, paciente, oferecendo uma espécie de tutorial, que a mim parecia algo da mais alta sabedoria. Nem sei bem com quantos anos, chegava, enfim, o grande dia, mas lembro de já estar lá pela 4a ou 5a série.

Lembro-me da sensação! Era como ter vencido um campeonato que a mim trazia benefícios como permanecer um pouco mais de tempo na cama, algo como uma compensação para descontar o tempo gasto com a antiga saga pelo laço do tênis. Virou lembrança e, de certo modo, motivo de reflexão.

No cotidiano da vida somos instados a dar respostas rápidas, a aprender e a realizar no imediato, sem tempo para assimilar processos ou sequer compreender em essência para onde estamos correndo ou para quais caminhos a vida nos conduz.

É o desafio do viver moderno, em uma pressa danada, que tem feito vítimas. A falta de tempo é quase sempre o tempo que falta. Tempo que falta para parar, para viver o hoje, o agora de cada dia; para saborear cada momento, no tempo dos encontros raros, da música apreciada, do livro folheado devagar, dos passos livres do relógio, do cabelo despenteado, dos pés descalços - ou calçados, sem laços, nem nós. Para viver aquela liberdade genuína, que, longe de ser irresponsável, é a força vital da sobrevivência humana, uma necessidade nestes tempos de absurda pressa.

Nas coisas simples, nesses desafios banais, como aprender a dar o laço do tênis, há uma pedagogia preciosa, a pedagogia da paciência, da insistência e do otimismo. Vale um olhar sobre ela. A paciência de quem ensina e de quem é ensinado, o tempo é seu fiador. A cada dia, a cada evolução celebrada, ela se alimenta e, paradoxalmente, se renova nos retrocessos. Chega a dialogar com o otimismo, fazendo uso da insistência. Esta, a insistência ou a perseverança, é linha mestra de quem sabe onde quer chegar; discípulos e mestres a experimentam e dela se nutrem. E assim sentem o amargo dos dias, refutam o desânimo das derrotas e elevam a virtude, aquele entusiasmo de dentro que nos faz acreditar no nosso poder de realização. Entusiasmo, que já é semente do otimismo e não deve ser confundido com alienação, mas com aquela certeza da capacidade, com o sentimento/atitude de que, na paciência e com perseverança, tudo se realiza - ou tudo é possível de realizar.

Falei do tempo como fiador desse método. Sem ele, nada feito! É na sua régua que tudo se dá. A pressa, codinome da ansiedade, é causa e resultado de perturbação pessoal e social.

Na pressa, os laços fáceis, as vezes viram nós complicados de serem desatados. Ou porque não podemos, ou porque assim escolhemos. Basta ver quantas coisas fazemos ou tentamos fazer ao mesmo tempo, no correr do tempo que nem sempre temos. Final do dia, sensação de não termos feito nada.

Os Evangelhos narram o episódio de uma visita de Jesus à casa de Marta e Maria e realçam uma peculiaridade dessa visita. Enquanto Maria se coloca próxima de Jesus para ouvi-lo, Marta cuida dos afazeres da casa, tarefa necessária, quem sabe até preparando a refeição para o visitante. Mas, num dado momento, escuta de Jesus uma exortação: -"Marta, Marta, Maria escolheu a melhor parte”.

É isto, a ideia da produção e dos resultados consumiu nossa capacidade de parar, de apreciar e de ouvir, de aprender com a vida e com o que é simples, retirando-nos muitas vezes da cena o essencial, daqueles momentos que alimentam a alma, que dão sentido à existência e fortalecem os nossos passos.

Marta e Maria são um pouco de todos nós. O equilíbrio que deve orientar nossa conduta e nossa forma de vida, reside na capacidade de “escolher a melhor parte”, o essencialmente essencial, a paixão fundamental, no cotidiano, no compasso normal da vida.

Quantas vezes, nos últimos meses, paramos para ver o pôr do sol? Lembro de um relato de uma psicóloga hospitalar que falava de uma paciente em estado terminal, acamada há alguns anos que, sabendo da chegada da hora final, pedia encarecidamente que a levassem para ver o pôr do sol. Marcaram para o sábado. Ela foi-se na sexta.

Da vida, e das coisas da vida, escolher a melhor parte é coisa do hoje, e de sábios.

Há laços a serem dados, há nós a serem soltos, mas sempre há de haver tempo para apreciar a beleza do caminho, meandros e surpresas do caminhar.

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