Quem se lembra de Elisa Samúdio?
As leis brasileiras e seus intérpretes obedecem ao princípio de que os assassinos devem ter direito à vida, salário e liberdade, mas suas vítimas e seus familiares nada.
José Ewerton Neto
Esta semana o ex-goleiro Bruno Fernandes condenado a 20 anos de prisão em 2010 por esquartejamento, desaparecimento e morte de Elisa Samúdio foi solto pela juíza Ana Filgueiras. Estava há 3 anos em regime domiciliar semi-aberto, ou seja, de seus 20 anos de condenação cumpriu apenas 9, mostrando que as leis brasileiras e seus intérpretes obedecem ao princípio de que os assassinos devem ter direito à vida, salário e liberdade, mas suas vítimas (eternos desaparecidos) e seus familiares (eternos sofredores) nada. Enfim, aos transgressores TUDO a suas vítimas, NADA.
Na primeira tentativa há 8 anos de soltura do assassino Bruno, ex-jogador do Flamengo, escrevi no jornal O Estado do Maranhão esta crônica que, por permanecer atual, transcrevo em suas partes fundamentais.
“Muito se tem escrito sobre o isolamento a que se relega o ser humano em seus últimos momentos. A assepsia e o tecnicismo de uma UTI, distantes do aconchego e da solidariedade familiar, concorrem para esse estado de coisas. É como se o quase morto passasse a pertencer a uma vexaminosa confraria de seres: os que tangem a morte, e que , por isso, são capazes de contaminar a alegria e o prazer dos que estão vivos.
Se esse é o modus operandi dessa relação com os quase mortos, imagine-se para os mortos, os definitivamente mortos: aqueles a quem, segundo essa lógica, se deve evitar a todo custo. Alguém pode objetar que homenagens aos mortos continuam sendo feitas, mas não falo aqui das celebridades. Para estes as lágrimas necessariamente jorram, ainda que a dor possa ser passageira e artificial, mas falo do morto comum, sem grana e sem fama, aqueles por quem choram apenas pais e filhos, quando muito.
Como uma garota de programa pobre, por exemplo.
Que haja nascido razoavelmente bonita e que, por isso, mesmo faz filmes pornôs e transa por dinheiro. Que na maioria das vezes nem chega a garota de programa mas só vai até prostituta mesmo. Enfim, alguém que, depois de morta, o melhor para todo mundo é que desapareça sem deixar vestígios que atrapalhem a festa dos que ficaram vivos: alguém que tenha sido nada, absolutamente nada.
Como assim se referiu o Ministro Marco Aurélio Melo, do alto de sua sapiência jurídica e arrogância imperial, ao explicar o habeas corpus concedido ao goleiro Bruno, que esteve preso durante 5 anos. Ele, que mandou matar e dar sumiço em uma mulher grávida por estar esperando um filho seu. Ela que, por essa razão, foi feita prisioneira dele e depois morta, esquartejada e teve ossos e carnes devorados por cães sedentos para ‘sumir’ definitivamente de sua vida, conforme denunciaram amigos presos do jogador. No dizer do ministro tanta atrocidade nada significa: “Nada, absolutamente nada, justifica a prisão deste rapaz durante todo esse tempo.”
Ao se basear para sua decisão em nebulosas interpretações do rigor da lei, causa espécie que haja contribuído para isso o fato de não haverem descoberto o cadáver da moça. “Se não descobriram o cadáver, então não há crime.” Inaugurando assim uma autorização para assassinos do tipo: “Quando matarem a partir de agora façam tudo para exterminar completamente a vítima. Assim, terão garantidas suas liberdades”.
A desfaçatez do assassino Bruno, depois de liberto, ao evocar cinicamente a compaixão da sociedade em contraponto à que não teve com sua vítima ao dizer “Minha permanência na cadeia não a trará de volta”, ressoa em consonância com a opinião do ministro expondo a lógica de uma lei que promove a remissão de todas as crueldades porque...os mortos não voltam e, portanto, não merecem que algum vivo perca tempo com eles.
“Este é um País feito de bandidos para bandidos”, já disse um eminente jurista do passado e parece caminhar para isso cada vez mais Para os bandidos, tudo. Para suas vítimas nada. Absolutamente nada.
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