Lição de vida na fronteira
Gilberto Arce Narváez, descendente do explorador espanhol Álvar Nuñez Cabeza de Vaca, primeiro europeu a visitar, no século XVI, as Cataratas do Iguaçu, nasceu em 1962 no pequeno pueblo de San Francisco, a 400 quilômetros ao sul de Madri.
Gilberto Arce Narváez, descendente do explorador espanhol Álvar Nuñez Cabeza de Vaca, primeiro europeu a visitar, no século XVI, as Cataratas do Iguaçu, nasceu em 1962 no pequeno pueblo de San Francisco, a 400 quilômetros ao sul de Madri.
Tinha sete anos quando os pais, desiludidos com a situação da Espanha, sob a ditadura do generalíssimo Franco, decidiram vir para o Brasil com os quatro filhos. Lavradores, estabeleceram-se em Coronel Sapucaia, distrito de Ponta Porã, no Mato Grosso do Sul, sobrevivendo do cultivo de milho, mandioca e erva-mate. Dois anos depois, os pais retornaram à Espanha, levando os três filhos mais novos, deixando Gilberto sozinho aos cuidados de um tio.
“Eram muito pobres e não puderam me levar junto com eles”, relembra. Esse tio, que acompanhara o pai de Gilberto na vinda para o Brasil, mudou-se com o sobrinho para Foz do Iguaçu, no Paraná, seguindo os passos do famoso ancestral, e aqui o ajudou a estudar. A muito custo, Gilberto formou-se em Administração de Empresas.
Hoje, aos 60 anos, casado há quase 40 com uma brasileira, mãe de seus dois filhos, ele é motorista de táxi em Foz do Iguaçu, cidade onde vive há quase 50 anos e de onde não pretende mais sair, nem mesmo para visitar os irmãos e demais parentes que ainda vivem na Espanha. Mesmo porque, quase todos os anos, os irmãos vêm visitá-lo.
Gilberto Narváez é um dos milhares de estrangeiros que, a partir dos anos 60, decidiram morar nesta que é uma das cidades mais cosmopolitas e multiculturais da América do Sul.
Aqui, revelam os censos, convivem cerca de 80 grupos étnicos, entre nativos e pessoas procedentes de quase todo o planeta, entre hispano-americanos (principalmente argentinos e paraguaios), italianos, alemães, japoneses, russos e ucranianos, além de estar aqui a maior comunidade islâmica do Brasil. Juntamente com a paraguaia Ciudad del Este e a argentina Puerto Iguazu, forma a Tríplice Fronteira, onde é possível ouvir nas ruas pessoas se comunicando em quase todas as línguas.
A economia de Foz do Iguaçu é movida principalmente pelo turismo (do qual Gilberto é beneficiário), cuja maior atração são as famosas Cataratas, e pela produção de energia gerada pela Hidrelétrica de Itaipu, uma das maiores do mundo.
Como mais ampla área de fronteiras das Américas, enfrenta problemas gerados pelo contrabando de mercadorias e pela a violência urbana. Mas, por outro lado, é um centro gerador de riquezas e oportunidades como poucos outros lugares do Brasil.
É nesta cidade paranaense onde talvez melhor se manifeste o caráter multiétnico e multicultural do Brasil, embora seja quase inexpressivo o número de afrodescendentes, devido às peculiaridades de seu processo de colonização.
Cinco universidades, especialmente a Universidade Federal de Integração Latino-Americana, atraem estudantes de quase todos os países vizinhos.
Ao final de um breve passeio no táxi desse espanhol simples e conversador, parente distante do intrépido Cabeza de Vaca, não tenho dúvida de que estou na companhia de um homem feliz. Nosso percurso, que inclui ida e volta ao Paraguai, depois de transposta a Ponte da Amizade, confirma o que já sabia sobre essa região de fronteiras onde pessoas do mundo inteiro convivem em ambiente de paz e fraternidade. O mundo é vasto e comporta gente com línguas, hábitos e costumes diferentes.
Gilberto está revoltado com a guerra entre a Rússia a Ucrânia, e me pergunta, com certa ingenuidade, por que eles não seguem o exemplo de Foz do Iguaçu. Aqui, num mesmo dia, ele me diz, você toma café da manhã no Brasil, almoça no Paraguai e janta na Argentina, ao lado de pessoas de todos os lugares.
Fala-me sobre Prudentópolis, cidadezinha a cerca de 400 quilômetros Foz, onde só vivem ucranianos. Ele me conta que na semana passada levou para lá uma família de russos que foi encontrar parentes da Ucrânia! E argumenta que enquanto em outros lugares do mundo erguem-se muros para separar os povos, aqui se constroem pontes para aproximá-los. E aponta: à direita, a Ponte da Amizade, ligando o Brasil ao Paraguai; à esquerda, a Ponte da Fraternidade, conectando-nos à Argentina; e, mais ao sul, edifica-se uma nova ponte, a da Integração, para ampliar a circulação de pessoas e mercadorias entre o Brasil e o Paraguai - onde vivem milhares de brasileiros cultivando campos de soja e investindo no comércio.
Enquanto ouço com atenção as histórias de Gilberto - que fala com quase devoção da família, de seu trabalho como motorista e de sua amizade com passageiros do mundo inteiro (além do espanhol, do português e de um pouco de inglês, ele arranha a língua dos índios guaranis – não sei bem porque, lembro de Darcy Ribeiro. Não foi esse visionário e humanista quem defendeu a tese de que o Brasil, por sua formação multiétnica, pelo caráter mestiço e fraterno de seu povo, seria o berço de uma nova civilização, a Nova Roma, como ele definia em suas conferências nem sempre levadas a sério?
O fato é que, nessas poucas horas de feliz convivência em Foz do Iguaçu com esse motorista espanhol que, cinco décadas depois de sua chegada, se recusa a voltar à Espanha natal, fiquei com a impressão de que o melhor lugar do mundo é aqui. E agora.
A ver.
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