SÃO PAULO - A técnica é simples, barata e promete milagres no tratamento e cura das mais diversas doenças, dentre elas o câncer e a AIDS. A auto-hemoterapia, que basicamente consiste na retirada de sangue da veia e aplicação no músculo de uma mesma pessoa, está sendo cada vez mais praticada. No entanto, toda a comunidade médica abomina o método e proíbe sua utilização a qualquer profissional de saúde. Como algo aparentemente tão simples e benéfico pode ser coibido?
Toda semana Maria Aparecida* tira sangue da veia e reaplica na nádega. Uma dose pequena, cinco mililitros. Há cerca de três anos ela ficou sabendo da prática pelo irmão que tinha leucemia, ele começou a fazer tratamento com a auto-hemoterapia e hoje se diz curado. Convencida, Maria resolveu por conta própria experimentar, “sofria muito de labirintite e ainda tinha um cisto no ovário, com as injeções de sangue não sei se estou curada, mas meu cisto sumiu e não escuto mais zumbido no ouvido”.
Hoje, ela não só recomenda a auto-hemoterapia, como também aplica periodicamente em outras pessoas. Parentes, amigos da igreja e do trabalho confiam a vida à Maria. Como a professora Joana Santos*, que há um ano leva toda família para levar as picadas. “Fazemos isso mais para prevenir doenças, como meu marido e meu filho primogênito, eu mesma não fico mais gripada, minha anemia passou e me sinto fisicamente mais bem disposta. Meu filho caçula também sofre de bronquite e alergias e vi grandes melhoras”, defende.
Divulgação e técnica
A auto-hemoterapia nasceu na França e data do início do século passado. Nos anos 30, pesquisadores dos Estados Unidos e do Brasil estudaram a eficácia do método caseiro, mas nada foi comprovado. Em 2007, um vídeo feito pelo clínico geral Luiz Moura, do Rio de Janeiro, começou a circular em todo Brasil. Nada de muito elaborado, o que se vê é apenas o médico em frente à câmera, falando de maneira direta e descomplicada, com o objetivo de convencer o público sobre a facilidade e benefícios da técnica.
Segundo ele, a aplicação tem o intuito de estimular a produção de anticorpos, células que entram em ação para defender nosso organismo quando este contrai antígenos - bactérias, fungos e vírus estranhos ao corpo. O sangue injetado seria, portanto, essa substância estranha que aumentaria o número de anticorpos e assim a proteção do sistema imunológico. E como o sangue é da própria pessoa, não tem como haver rejeição, já que as substâncias que definem o tipo sanguíneo e o fator RH do indivíduo são as mesmas.
Em casos gerais, são extraídos cinco mililitros de sangue da veia do braço e logo injetados no bumbum. Em casos de doenças mais graves, o recomendado seria a injeção de dez mililitros, com aplicação da metade desse conteúdo em cada nádega. Segundo Moura, o processo deve ser feito uma vez por semana, isso porque o sangue ficaria durante cinco dias no músculo produzindo anticorpos, mais especificamente os macrófagos - tipo de anticorpo que por meio da fagocitose elimina células infecciosas. A promessa é que durante esse período a taxa de macrófagos aumentaria de 5% para 22%. Os outros dois dias seriam necessários para que o sangue saia todo do músculo e este descanse para uma nova aplicação.
Segundo Moura, ele próprio testemunhou casos de cura de doenças gravíssimas, como câncer e AIDS, tratados só com a retirada e aplicação de sangue. Além de ser um método de custo baixíssimo, basta apenas uma seringa (que se compra em qualquer farmácia por R$ 1) e uma pessoa que saiba pegar veia e dar injeção no músculo. “É uma coisa que poderia ser divulga e usada em regiões sem recurso onde as pessoas não têm condições de pagar estimulantes imunológicos caríssimos, como um remédio à base de reisado de timus de vitela que causa o mesmo efeito que a auto-hemoterapia”, defende o médico.
Riscos
Até aqui a auto-hemoterapia pareceu ser um grande achado, tal técnica certamente revolucionaria a medicina atual com o tratamento e cura de diversas doenças ao mesmo tempo, algo quase milagroso. Entretanto, nenhum profissional da saúde no Brasil está autorizado a praticá-la porque não existem pesquisas científicas que comprovem de fato seus benefícios. E o pior é que muitos doentes estão abandonando os tratamentos convencionais em prol de algo incerto.
Segundo a Resolução 1.499/98, do Conselho Federal de Medicina (CFM), médicos e enfermeiros estão proibidos de utilizar experimentalmente qualquer tratamento sem comprovação científica e sem a autorização de um conselho de ética. Quem o fizer estará sujeito à advertência, censura, suspensão do exercício profissional ou cassação do registro profissional. Já para a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), os estabelecimentos que realizarem a auto-hemoterapia estarão sujeitos às penalidades previstas na Lei de Infração Sanitária (nº 6.437/77), e podem ter que pagar multas que vão de R$ 2 mil a R$ 1,5 milhão. Quanto às pessoas comuns que aplicam a seringa de sangue em terceiros, responderão na Justiça por uso ilegal da medicina.
Mesmo assim, cada vez mais o método é utilizado de maneira caseira, afinal que mal faria experimentar um tratamento alternativo que, se não fizer bem, como muito prometido, pelo menos não fará mal, certo? Errado. Segundo Jorge Vaz, hematologista do Centro de Oncologia e Hematologia de Brasília (Cettro), o sangue é feito para circular nas veias e não no músculo. “O tecido muscular pode se romper favorecendo a formação de abscessos [inflamação com pus originada pela necrose do tecido], sem falar que uma vez fora da veia, a agulha pode ser infectada por microorganismos do ar e contaminar o indivíduo”, alerta.
Já o hemoterapeuta José Comenalli Marques Jr, da Sociedade Brasileira de Hematologia e Hemoterapia (SBHH), é enfático: “a auto-hemoterapia não produz anticorpos”. O especialista ainda informa que a técnica pode estimular o desenvolvimento de doenças auto-imunes, como a anemia hemolítica auto-imune por anticorpos a frio. Algumas pessoas não sabem, mas podem ter um tipo de “anticorpo ruim” que é ativado a temperaturas mais baixas, reagindo contra o próprio corpo. “Se após a retirada da veia, a pessoa esperar um pouco, e aplicar o sangue no músculo com a temperatura menor que 37º (temperatura normal do corpo), um auto anticorpo chamado IgM (imunoglobulina M) frio, reagirá destruindo glóbulos e causando tremedeiras e febre. É um fenômeno raro, mas pode acontecer com qualquer um”.
Como então explicar as possíveis melhoras de doenças testemunhadas por diversas pessoas adeptas à auto-hemoterapia? A resposta mais aceita entre a comunidade médica é o efeito placebo: quando a pessoa apenas imagina estar melhorando porque adquire uma “medicação” que na verdade não possui atuação efetiva. Para Marques, “praticar a auto-hemoterapia seria como ir a uma sessão religiosa e sair de lá curado de alguma doença, tudo com a força do pensamento, da fé”. Mas as pessoas também devem considerar os fatores paralelos à melhora, “muitos mudam de dieta alimentar quando estão doentes, o que acaba influenciando o quadro clínico. A melhora também pode ser do próprio curso da doença”.
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