Babaçuais perdem espaço para pasto no MA

Globo Rural

Atualizada em 27/03/2022 às 15h05

SÃO LUÍS - A terra tem dono, mas o babaçu não é de ninguém. Esse é um sentimento antigo das quebradeiras do Maranhão, que entram nas fazendas dos criadores de gado para catar o coco. No entanto, em muitas regiões, elas podem perder o seu ganha-pão.

Olhando do alto, em algumas regiões, parece que o babaçu nunca vai acabar. Mas não é bem assim. Uma imagem foi feita no começo dos anos 80 há 100 quilômetros de São Luís, na primeira reportagem do Globo Rural sobre o babaçu. E outra imagem da mesma área, foi feita duas décadas depois. José Mário Frasão foi o agrônomo consultado por nossa equipe na época. E é ele quem dá os números.

“Em 1980, foi feito um levantamento através de imagens de satélite onde foram mapeadas cerca de 10 milhões de hectares de área de ocorrência de babaçual. Em relação a esse número, atualmente restaram apenas 60% do babaçu que existia”, explica.

São quatro milhões de hectares de babaçuais destruídos em pouco mais de 20 anos. A maior parte deu lugar às pastagens. A pecuária é a grande inimiga do babaçu.

Imperatriz é uma cidade maranhense que fica na divisa com o Tocantins. Num rápido sobrevôo, encontra-se um trator pondo abaixo palmeiras adultas. A equipe do Globo Rural procurou o Ibama para saber se havia autorização para o corte. “Pra nossa unidade do Ibama, para essa região nenhum pedido foi feito. Com certeza não há autorização”, afirma Antônio César Caetano, analista ambiental do Ibama.

A fiscalização não é suficiente para acompanhar o ritmo do desmatamento. Passando por uma estrada da região, é visível a diferença entre as palmeiras jovens de um lado verdes. E do outro, mais velhas e bem secas. A explicação é encontrada na fazenda do presidente do Sindicato Rural de Imperatriz. É ele quem nos mostra uma técnica usada para limpar o pasto. “Nós estamos aplicando herbicida específico para palmácia, no caso da região é a pindoba do babaçu. Esse produto é aplicado pé por pé. Se tiver 40 mil, serão feitas 40 mil aplicações”, afirma Nélson Henrique Martinez.

O analista ambiental do Ibama, Antônio Joker Ribeiro, comenta o uso de herbicida para matar o babaçu. “O uso de herbicida é ilegal, o uso de herbicida está na lei 7824 de 22 de janeiro de 2003. Ele não pode usar herbicida”, afirma.

Voltando à fazenda do seu Nélson Martinez, ele nos leva até a reserva legal. Nesta região de pré-Amazônia, 80% da área das fazendas tem que ser preservada, o que raramente acontece. “Quase nenhuma propriedade tem a quantia que é determinada pelo governo. Então todo mundo está reclamando porque não tem condições de ter uma fazendo, vamos supor de 100 aluqeires, você ter 50, 60 alqueires dela de reserva e ela torna-se improdutiva”, reclama. Ele diz que quando o corte de palmeira é feito na região, as quebradeiras de coco denunciam o fazendeiro ao Ibama que é multado pela infração.

Depois de formar as pastagens e cercar os piquetes, muitos fazendeiros proíbem a entrada das quebradeiras. É o chamado coco preso. Epitácio de Moura Farias é gerente de uma fazenda com duas mil cabeças de gado. Ele fala sobre o conflito na região.

“Uma boa parte não deixa entrar ninguém . E se entrar, tem vigia, tem segurança que é uma propriedade particular. Tiramos como for preciso tirar porque o lado do fazendeiro, nós temos o gado separado em lotes. As quebradeiras de coco deixavam os colchetes abertos, cortam arame”

Para quem depende do babaçu para viver, a rotina do trabalho se mistura ao medo. Um sentimento que as quebradeiras carregam pelas trilhas do palmeiral. “Vai tudo naquele medo: será que vai deixar a gente entrar hoje, será que não vai. É muito triste. É muito ruim você entrar num ambiente que é proibido”, afirma a quebradeira Antônia da Costa

No começo da década de 90, a disputa entre quebradeiras e fazendeiros pelo acesso e proteção aos babaçuais ganhou um novo capítulo.

Em 1992, através de decreto presidencial, foram criadas três reservas agroextrativistas no estado do Maranhão. Uma delas, a reserva de Mata Grande, ocuparia pouco mais de dez mil hectares nessa região, perto de Imperatriz. Só que até hoje, mais de dez anos depois do decreto, ela ainda não saiu do papel.

Euvaldo Pereira da Silva é técnico do CNPT, Centro Nacional de Proteção às Populações Tradicionais, ligado ao Ibama. Ele alerta que os criadores de gado estão destruindo os babaçuais para impedir a implantação da reserva. “Essa aí foi uma tática pela grande maioria dos latifundiários da região porque eles achando que devastando, acabando os palmeirais, aos poucos provocando o êxodo rural porque as famílias iam abandonando, esse processo ia parar”, diz.

Dona Francisca é líder da Associação dos Moradores da Mata Grande. Ela acredita que três quartos do babaçual da reserva já foram derrubados. “Acho que com a criação da reserva o babaçual pode ser recuperado. Num botando mais veneno, nem derrubando, ele volta depressa”, acredita.

Depois da demarcação, o projeto prevê o assentamento de famílias dentro da reserva agroextrativista: uma espécie de reforma agrária ecológica. Várias famílias já se cadastraram e estão com esperança de conseguir um pedaço de terra.

Gente como dona Rosilene de Souza Santos, quebradeira de coco, e o agricultor Pedro. Eles moram num terreno emprestado. Fazem uma rocinha onde o dono da terra permite. E trabalham também na roça dos outros. Para ajudar no sustento da família, Pedro pega vários serviços. Inclusive, o de derrubar babaçu. “Todos os anos nós derrubamos muito. Nós derrubamos cerca de 25 mil pés de coco. Temos que fazer a vontade do dono das terras, mesmo que com isso minha mulher tenha que andar muito mais. Se eu não derrubar, outro derruba”, afirma

Depois do trabalho na roça, dona Rosilene passa um bom tempo na quebra do coco. Dia após dia, uma idéia martela na sua cabeça. “Meu deus, será que eu nunca vou ter a sorte de ganhar um pedaço de terra para mim? Trabalhar na terra dos outros é muito sofrimento”, sonha ela.

Mas aqui mesmo na região tem gente com mais sorte que dona Rosilene. Dona Cícera Santos já conseguiu seu pedaço de chão dentro de outra reserva agroextrativista e, feliz, ela brinca com o passado recente. “Nós pobre só tinha terra de baixo das unhas mesmo. E quando morresse o pessoal enterra de graça”, ri a agricultora.

Ela é uma das assentadas na reserva agroextrativista do Ciriaco. Esta reserva, assim como a de Mata Grande, fica próxima à Imperatriz na divisa dos Estados do Maranhão, Tocantins e Pará. Metade da área de sete mil hectares deve ficar intocada. A outra metade foi dividida em lotes de 20 hectares, onde apenas quatro podem ser explorados com roça.

“Os fazendeiros não acreditavam não. Eles dizia para nós, vocês larguem disso que o governo não vai olhar para vocês. Ele só olha para os ricos e não para um povo lascado que nem vocês não. Nós fomos lutar. Nós fomos para Brasília e fez aquilo pegar fogo”, diverte-se.

As manifestações ocorreram em 2002. Em 2003, a reserva saiu do papel. A área foi demarcada e os fazendeiros, indenizados. Seu Aldenísio e dona Maria estão, aos poucos, melhorando de vida, a começar pela casa em que moram. Toda de alvenaria, substituiu a velha casinha barro coberta de palha. Seu Aldenísio já imagina a futura roça, agora em terra própria. “A idéia é plantar feijão, plantar mandioca, plantar arfavo, milho, arroz.. A idéia da gente é isso”, diz contente.

E será que o coco vai continuar importante na vida desta gente? “Eu acho que a gente num vai esquecer o coco. Eu sempre agradeço a Deus por isso, saber quebrar o coco, saber lidar com ele. Eu sou feliz, graças a Deus”, afirma dona Maria.

O mundo do babaçu sempre viveu cercado pela miséria. Em muitos povoados do Maranhão, o ganho de uma quebradeira não passa de R$ 2,00, por um dia de trabalho.

Mas existe uma esperança despontando. É o projeto de uma associação que eliminou os intermediários, investiu no beneficiamento da amêndoa e já conquistou mercado até no exterior.

O Toc-Toc dos porretes ressoa pelos povoados maranhenses. Como o som de um relógio marcando o tempo que parece ter ficado no passado.

Mas num povoado na região do médio Mearim, um rio que margeia a cidade de Pedreiras, o tempo já anuncia mudanças. Deste povoado sai a maior parte da produção de amêndoas de babaçu do Estado do Maranhão. E é nela que fica a sede da Assema, Associação em Areas de Assentamento no Estado do Maranhão, criada há 15 anos para melhorar a qualidade de vida da população rural.

Não é à toa que aqui despontem líderes como Maria Alaídes. Ela também é quebradeira de coco. E, na casa onde nasceu, no povoado de Ludovico, em Lago do Junco, tem os afazeres de qualquer outra quebradeira. “Aqui moram 9 pessoas, entre pai mãe e filhos. Eu tenho sete filhos e adotei uma neta”, afirma ela.

A vida dela não é fácil, mas já foi pior. Os pais também quebravam coco, enquanto ela ficava em casa cuidando dos irmãos menores. No estudo, só chegou ao terceiro ano primário. “Na época da minha mãe o coco sempre foi mais difícil. A gente não tinha para onde ir e se nós não lutássemos, nós íamos morrer de fome e começamos a nos organizar”, afirma.

Essa espírito de luta trouxe ela até a Câmara Municipal. Em 200 ela foi eleita vereadora do município de Lago do Junco. Ela mostra, com orgulho, a mesa que ocupa na Câmara.

Na câmara de Lago do Junco, ocorreu a maior vitória das quebradeiras. Em 97, elas conseguiram a aprovação da lei municipal do babaçu livre, que garante o acesso às fazendas e estabelece normas de preservação dos babaçuais.

Trabalhando como formiguinhas, as quebradeiras respondem por 80% da arrecadação de Lago do Junco. É bem cedo e dona Joana Rodrigues Alves prepara as tralhas com a ajuda dos filhos.

No caminho para o palmeiral, ela vai chamando a turma da quebra do coco. Seguem sem medo, nesta região não existe coco preso. A lei do babaçu livre permite o acesso das mulheres às palmeiras que ficar em áreas particulares. Isso diminuiu o conflito entre quebradeiras e fazendeiros. O problema é que essa lei só existe em cinco municípios.

As mulheres se espalham pelo campo. “Eu sempre venho pegar coco aqui e eu considero as palmeira como o fruto da minha vida só que as terra não é minha. É de outro” afirma ela.

Os cocos mais difíceis aqui são derrubados na base do rebolo, uma pedra, jogada por quem tem braço forte e boa pontaria. No caso é a Osailde Alves, filha de dona joana, quem está rebolando. “É bom demais quando a gente acerta e vê aquela montão de coco caindo. É uma alegria muito grande para gente”, afirma ela.

As mulheres vão juntando os cocos numa clareira, onde começam a quebra. Ananda tem onze anos e já está na quebra do coco. Ela estuda e vai fazer a sexta série e tem um sonho. "Quero ser médica”, revela.

Ananda é uma das muitas crianças que perdem parte da infância na dura quebra do coco. As quebradeiras também discutem essa questão. “Não é exploração do trabalho infantil, é um complemento de agricultura familiar”, diz Maria Alaídes.

Depois de um dia de trabalho no palmeiral e de gastar o braço na quebra do coco, as mulheres ainda têm que preparar as refeições, dar banho nas crianças, lavar louça... No fim-de-semana... Precisam colocar a roupa em dia e dar uma ajeitada na casa. Quebradeira é mulher que multiplica as forças e o tempo.

Na região do médio Mearim, as quebradeiras investem em novas atividades. Criaram a farmácia viva, uma coleção de plantas medicinais que elas vêm estudando para desenvolver medicamentos naturais e baratos, mantêm uma oficina de papel reciclado, onde fazem produtos delicados e junto com os maridos, estão implantando roças orgânicas.

Preocupadas com o futuro dos filhos e o êxodo rural, as mulheres conquistaram, com a ajuda da igreja e da prefeitura de Lago do Junco, a Escola Família Agrícola. As crianças moram na escola por 15 dias e, nos outros quinze, ficam em casa para aplicar os conhecimentos. Aqui é plantada a semente para que todos os outros projetos sigam em frente.

Mas o projeto mais importante ainda é o aproveitamento do babaçu. Toda a produção de amêndoas dos povoados de Lago do Junco vão para cantinas. Dona Joana confere o rendimento do dia. “Seis quilos. Hoje tá dando para levar um quilo de açúcar e um litro de óleo. Ainda sobreou 50 centavos”, conta ela.

A cantina é da Assema, associação das quebradeiras. Por isso, o preço é o melhor da região. “A vantagem de vender na cantina é que você tá tirando o atravessador porque a cantina segura o preço o ano inteiro de 80, 70 até 60 centavos e o atravessador chega até a 30 centavos”, explica dona Joana.

Todas as amêndoas acumuladas vão direto para a prensa de óleo da Copalj, a Cooperativa dos Produtores Agroextrativistas de Lago do Junco, associada à Assema. Na cooperativa, a amêndoa vai ser moída e prensada. O babaçu rende um óleo láurico, ideal para a indústria de cosméticos, sabões e tintas. Para aquecer a caldeira, casca de babaçu. Parte do óleo produzido é embalado nos tambores com inscrição em inglês, prontos para a exportação.

Em lago do junco, o óleo de babaçu que não é exportado vem para esta pequena agroindústria. É a primeira fábrica de sabonetes criada e administrada pelas quebradeiras. .

O óleo, extraído das amêndoas, é misturado a essências e depois batido até dar o ponto da massa. Ela é colocada na forma, um simples tubo de PVC. Depois de esfriar, o rolo de sabonete é empurrado para fora da forma e fatiado. Na fase de acabamento, tem que tirar as rebarbas e alisar o sabonete. As quebradeiras se revezem no serviço da fábrica.

É o caso da dona Joana. Estas mãos delicadas que embrulham os sabonetes são as mesmas que vão para o campo e pegam no pesado. “Muitas vezes, eu quebro coco durante a manhã e à tarde venho trabalhar na fábrica”, diz.

O sabonete agregou valor ao babaçu e ao trabalho da quebradeira. Outra conquista destas mulheres foi a auto-estima. “Antes nós éramos escravas. Hoje nós somos livres. Somos donos da nossa vida”, afirma uma quebradeira.

E estão mostrando mesmo. Em 2003, 10.500 sabonetes foram exportados para os Estados Unidos. No maranhão, as quebradeiras abriram uma loja, na capital, São Luís, onde vendem o sabonete e outros produtos do babaçu, como o óleo e artesanato.

As quebradeiras já deram um grande passo rumo a uma vida melhor. Dona Joana não quer deixar o que conquistou, quer continuar na sua casinha onde já conseguiu colocar estante com televisão e aparelho de som. “Nem terminei de pagar ela ainda. Estou ainda juntando dinheiro para pagar”, diz. Dona Joana não quer sair daqui. “Do que eu era antigamente para o que eu sou hoje, eu já estou quase dizendo que já chega para mim. Eu tenho orgulho de ser mulher, orgulho de ser quebradeira”, contenta-se.

Dona Joana exibe na mão esquerda duas alianças: uma de casamento e outra, feita de casca de coco, expressa a união dessas mulheres com seu trabalho, com seu lugar. “Eu nasci aqui e vou morrer aqui. Essa é a conquista preciso porque eu vou repassar isso para os meus filhos e para os meus netos. Então, minha luta é para a preservação do babaçu”, afirma a vereadora Maria Alaídes.

Três mil e oitocentas pessoas da região do médio Mearim são beneficiadas pelos trabalhos da associação. A Assema recebeu, em 2003, o prêmio Chico Mendes do Ministério do Meio Ambiente, pelas alternativas econômicas sustentáveis que criou e por incentivar a participação de populações locais em decisões que afetam seu modo de vida.

Leia outras notícias em Imirante.com. Siga, também, o Imirante nas redes sociais X, Instagram, TikTok e canal no Whatsapp. Curta nossa página no Facebook e Youtube. Envie informações à Redação do Portal por meio do Whatsapp pelo telefone (98) 99209-2383.

Em conformidade com a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais) - Lei nº 13.709/2018, esta é nossa Política de Cookies, com informações detalhadas dos cookies existentes em nosso site, para que você tenha pleno conhecimento de nossa transparência, comprometimento com o correto tratamento e a privacidade dos dados. Conheça nossa Política de Cookies e Política de Privacidade.