Checagem

Entenda a quem pertencem presentes ofertados a presidentes brasileiros

O Comprova explica o caso das joias sauditas, o que prevê a legislação e quais são as questões éticas envolvidas no caso.

Projeto Comprova

O Comprova Explica buscou esclarecer o que diz a legislação a respeito de presentes recebidos por presidentes brasileiros.
O Comprova Explica buscou esclarecer o que diz a legislação a respeito de presentes recebidos por presidentes brasileiros. (Reprodução)

Comprova Explica

O governo de Jair Bolsonaro (PL) tentou entrar no país ilegalmente com joias de alto valor dadas pelo governo da Arábia Saudita em 2021. Um conjunto de diamantes ficou retido no aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, por não ter sido declarado à Receita Federal. Outro foi incorporado ao acervo pessoal do ex-presidente depois que ele deixou o mandato. Segundo a legislação, porém, presentes dados por outros chefes de Estado aos presidentes brasileiros são, via de regra, propriedade da União. Segundo entendimento do Tribunal de Contas da União (TCU), a exceção são aqueles de “natureza personalíssima” ou de “consumo imediato”. O TCU não considera pedras preciosas e joias como bens personalíssimos e ordenou que Bolsonaro devolva à presidência as joias e armas recebidas por ele durante o seu mandato (2018-2022). O Comprova explica o caso das joias sauditas, o que prevê a legislação e quais são as questões éticas envolvidas no caso.

Conteúdo analisado: Postagens em redes sociais discutem a legalidade ou ilegalidade do recebimento de joias avaliadas em R$ 16,5 milhões pelo governo de Jair Bolsonaro. A existência dos bens, presente do governo saudita, foi revelada pelo Estadão em 3 de março. Parte deles foi retida pela Receita Federal por não ter sido declarada, a outra entrou de forma irregular no país e foi para o acervo pessoal do ex-presidente. O tema repercutiu na imprensa e em grupos alinhados ao atual governo nas redes sociais. Em contrapartida, os presentes recebidos por Lula e Dilma (PT) também passaram a ser questionados por simpatizantes de Bolsonaro. A confusão é potencializada por uma mudança na legislação em 2016 e pela interpretação da norma, que permite aos chefes de Estado manter em seu poder presentes que sejam de “natureza personalíssima”, o que é um termo ambíguo do texto.

Comprova Explica: Em 3 de março deste ano foi revelado pelo Estadão que um conjunto de joias avaliado em R$ 16,5 milhões dado pelo governo da Arábia Saudita a Bolsonaro ficou retido na Receita Federal porque estaria ingressando de maneira ilegal no país. O ex-presidente não apresentou a documentação necessária para que os bens fossem incorporados ao patrimônio da União, e nem registrou-os como itens pessoais, o que acarretaria o pagamento de um imposto e multa quase equivalente ao valor das joias.

A reportagem gerou discussões nas redes sociais principalmente entre apoiadores do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), segundo levantamento da Quaest. As redes bolsonaristas, por sua vez, questionaram os presentes recebidos em mandatos anteriores de Lula e pela ex-presidente Dilma Rousseff (PT).

Diante dos conteúdos de desinformação e das discussões sobre o assunto, o Comprova Explica buscou esclarecer o que diz a legislação a respeito e o que deve ser feito com os presentes recebidos pelos presidentes brasileiros.

O regramento para o destino de presentes oferecidos aos presidentes mudou diversas vezes desde a redemocratização. A alteração mais recente foi feita em 2016, quando o Tribunal de Contas da União (TCU) determinou que bens recebidos de chefes de Estado pelo presidente durante o exercício do mandato pertencem à União. Há, contudo, duas exceções: quando o presente é de “natureza personalíssima” e quando é de “consumo imediato”.

No entanto, a avaliação sobre o enquadramento ou não de um item como “personalíssimo” é um tanto subjetiva, uma vez que permite diferentes interpretações. Ainda assim, no caso das joias recebidas por Bolsonaro, o próprio TCU já determinou que não se enquadram na exceção da norma.

Com base no acórdão do TCU de 2016, os presidentes Dilma Rousseff e Luiz Inácio Lula da Silva tiveram que devolver 471 presentes ao patrimônio comum da Presidência depois de já terem deixado o mandato.

Como verificamos: Procuramos na legislação brasileira as leis e decretos que tratam do recebimento de presentes e de outros bens por parte dos chefes de Estado. Também pesquisamos matérias publicadas nos veículos profissionais de imprensa a respeito das joias enviadas à Bolsonaro e dos desdobramentos da revelação feita pelo Estadão.

O que diz a legislação brasileira

A primeira lei que determina o que é o patrimônio privado dos presidentes é de 1991. Ela não fala de presentes em nenhum dos seus 20 artigos, e só cita o acervo documental do chefe do Executivo. A regulamentação dessa lei ocorreu somente em 2002, no governo Fernando Henrique Cardoso, e, desta vez, fez menção aos presentes.

O decreto 4.344/2002 diz que são considerados da União “os documentos bibliográficos e museológicos recebidos em cerimônias de troca de presentes, nas audiências com chefes de Estado e de Governo por ocasião das “visitas oficiais” ou “viagens de Estado” do presidente da República ao exterior ou de chefes de Estado e de Governo estrangeiros ao Brasil.

Assim, a interpretação vigente era que bens recebidos fora da cerimônia de troca de presentes eram do acervo pessoal. Contudo, em 2016, o TCU reformou a norma e determinou que todo presente recebido por outros chefes de Estado é da União, com exceção dos itens de “natureza personalíssima” ou de “consumo direto”.

O relator do caso, o ministro Wallton Alencar, argumentou, nos autos, que os presentes dados a outros chefes de Estado são pagos pela União. Logo, os itens recebidos também deveriam ser públicos.

Por conta do novo entendimento, os presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff tiveram que devolver, ao todo, 471 presentes (360 de Lula e 111 de Dilma) que tinham sido incorporados aos respectivos acervos pessoais. Esses bens voltaram para o patrimônio comum da Presidência.

As joias sauditas

O Estadão revelou no dia 3 de março a existência de um conjunto de joias enviadas pelo governo da Arábia Saudita e que teriam como destino a então primeira-dama Michelle Bolsonaro. As peças, avaliadas em cerca de R$ 16,5 milhões, foram apreendidas pela Receita Federal, em 2021, no aeroporto de Guarulhos, em São Paulo.

Elas estavam na mochila de um assessor do ex-ministro Bento Albuquerque (Minas e Energia), que voltava de um evento no país. Desde então, documentos e vídeos mostram que a Presidência tentou liberar os bens até o último dia de mandato.

Segundo a Receita Federal, o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro não apresentou a documentação necessária para que as joias fossem incorporadas ao acervo da União. Para que entrassem no país como itens pessoais, seria necessário o pagamento de 50% do valor do produto, mais multa de 25% do total do item apreendido.

Em 8 de março deste ano, após o caso vir a público, o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) defendeu o pai dizendo que um segundo conjunto de presentes, que não foi retido pela Receita, estaria em um galpão pessoal de Bolsonaro. Segundo o parlamentar, tratam-se de itens “personalíssimos” e, por isso, foram incorporados ao acervo pessoal do ex-presidente. A caixa contém um relógio, uma caneta, um par de abotoaduras, um anel e um tipo de rosário, todos da marca suíça Chopard.

Contudo, o acórdão do TCU de 2016 não considera pedras preciosas enviadas a chefes de Estado como presentes pessoais.

“Imagine-se, a propósito, a situação de um chefe de Governo presentear o presidente da República do Brasil com uma grande esmeralda de valor inestimável, ou um quadro valioso. Não é razoável pretender que, a partir do título da cerimônia, os presentes, valiosos ou não, possam incorporar-se ao patrimônio privado do presidente da República, uma vez que ele os recebe nesta pública qualidade”, argumentou o ministro Wallton Alencar em 2016.

No mesmo acórdão, o TCU cita como itens personalíssimos as medalhas personalizadas. Já em relação aos itens de consumo, são citados bonés, camisas, camisetas, gravata, chinelo e perfume.

Em entrevista à CNN, a advogada e doutora em Direito Constitucional Gabriela Araújo, assim como o ministro, avaliou que, pelo alto valor, as jóias não podem ser consideradas bens personalíssimos.

O site do Planalto também lista roupas, alimentos e perfumes entre itens personalíssimos que podem permanecer em posse de ex-presidentes após o término do mandato. Cita ainda que “presentes oferecidos por cidadãos, empresas e entidades costumam permanecer com o ex-presidente”.

Em 15 de março, o TCU determinou que o ex-presidente Bolsonaro devolva o conjunto de joias de luxo que recebeu da Arábia Saudita. A entrega deve ser feita à Secretaria-Geral da Presidência da República até o dia 20 de março. Bolsonaro também terá que devolver um fuzil e uma pistola que recebeu em 2019 dos Emirados Árabes.

“Presentes que são doados ao Estado brasileiro são patrimônio público. É preciso separar o público do privado. E no casos dessas joias, não há qualquer dúvida que elas devem ser incorporadas ao patrimônio público”, frisou o presidente do TCU, Bruno Dantas, ao final da sessão do tribunal.

Questão de ética no serviço público

O recebimento de presentes por parte de autoridades públicas, como presidente, ministros e diplomatas deve seguir o Código de Conduta da Alta Administração Federal. A regulamentação do código diz que é permitido receber presentes “quando ofertados por autoridades estrangeiras, nos casos protocolares em que houver reciprocidade ou em razão do exercício de funções diplomáticas.”

É considerado que, nesse caso, não é possível recusar o presente. Porém, a legislação determina que fim precisa ser dado a esse bem. Há três possibilidades:

  1. se for bem de valor histórico, cultural ou artístico, ele precisa ir para o acervo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional-IPHAN;
  2. o presente pode ser doado a entidade de caráter assistencial ou filantrópico reconhecida como de utilidade pública desde que a entidade se comprometa a usar aquele presente ou o dinheiro da sua alienação em suas atividades;
  3. o presente pode ser incorporado ao patrimônio da entidade ou órgão em que o presenteado exerce sua função.

Autoridades podem, sim, receber brindes, mas eles não podem ter valor superior a R$ 100.

Por que explicamos: O Comprova Explica tem a função de esclarecer temas importantes para que a população compreenda assuntos que estão em discussão nas redes sociais e que possam gerar desinformação. Neste caso, conhecer o que de fato diz a legislação brasileira sobre o recebimento de presentes por presidentes permite que os leitores formem opiniões sobre os políticos envolvidos com base na verdade.

Outras checagens sobre o tema: O tema das joias enviadas pelo governo saudita já foi alvo de verificação pelo Aos Fatos, que desmentiu que um ofício provasse que governo Bolsonaro seguiu rito legal para incorporar joias ao acervo público.

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